Metamorfose em Adelaide Hills

Fotografia: DR
Igor Beron

Igor Beron

Adelaide Hills é uma das regiões que mais apelam ao meu emocional no universo do vinho.  Os vinhos, as pessoas, a paisagem. Todos elementos que fazem parte da minha história de vida. Os devastadores foram os fogos no país deixaram um rastro revoltante de destruição: mais de meio milhão de animais morreram, inúmeras casas destruídas e dezenas de feridos.

 

Nesse artigo busco trazer a diversidade à tona. Reforço que nossa percepção do magnífico pode expandir exponencialmente, alcançando alturas que nunca imaginamos pois sempre tivemos o medo de arriscar. Descobrir a diversidade é um risco. É custoso no sentido monetário e de tempo, mas se paga a cada momento que nosso fôlego é roubado por um vinho inesperado. E perdi a conta de quantas vezes isso me aconteceu com os vinhos australianos.

 

A BUSCA POR UMA IDENTIDADE PRÓPRIA E AUTÊNTICA

 

Quando coloquei voltei a por meus pés na Austrália foi um ataque “mediterrânico” que invadiu meus sentidos com impressões de calor, selva e o selvagem, deserto, o solar, absolutamente como eu já conhecia bem e sentia muita falta - era a segunda vez que eu voltava a morar no país. Características que constroem a noção de um terroir extremo, que reflete diretamente na grande parte da personalidade dos australianos e seus vinhos. Verdade a maior parte do tempo. Porém, nem sempre se trata de um reflexo acurado da totalidade. É o que veremos agora, ao explorarmos uma região contrastante ao todo, de clima frio e vinhos de elegância.

 

A Austrália viveu uma revolução imensa nas últimas décadas: sua imagem transita atualmente de fonte de vinhos descontraídos, frutados - o famoso “sunshine in a bottle” - para vinhos com sentimento de individualidade, frescura e pureza, que expressam uma cultura longuíssima de produção e o “drive” insaciável da nova geração de criar vinhos autênticos. Vinhos de apelo ao intelecto.

 

Sunshine in a bottle mostrou-se um posicionamento insustentável em um país que enfrenta custos de produção tão elevados com mão de obra, sérios problemas de escassez de água e as exorbitantes distâncias que o vinho percorre dentro do país. Essa imagem ajudou a esvaziar muitas cubas e até mesmo trouxe sucesso a alguns. Mas inundou o mercado e comprometeu a imagem de vinhos mais sérios. E hoje a Austrália sofre para revertê-la. O país que foi pioneiro nesse estilo de vinho e posicionamento, logo deixou de voar solo. Hoje, perdeu espaço com a entrada de novos “players”. A briga é árdua contra outros gigantes do sul da França, Espanha ou mesmo países do novo mundo, que produzem estilos similares e não estão isolados naquele canto remoto do globo. Paralelamente, quanto mais próximo a vinhos de identidade se chega, a competição passa a ser complementar e não excludente. E, cada vez mais, existe espaço.

 

É o caso da nova Austrália que exponencialmente ganhou mercado nesse nível com seu posicionamento inovador, inserido na lacuna não preenchida entre sunshine in a bottle e vinhos de guarda que enfrentam os leilões das grandes capitais a comandar dígitos espantosos à cada lance dado, como Grange, Hill of Grace, Torbreck, Wendouree ou do amigo Chris Ringland - que gentilmente já me recebeu em sua casa, onde conversamos, fizemos as pigeages da sua microprodução e provamos o dia todo. Trata-se da nova geração, que fermenta de forma selvagem as ideias e traduz uma personalidade marcante a um novo perfil de vinho que une o melhor do fine wine com a acessibilidade de vinhos não complicados.

 

“Adelaide Hills me lembra a Toscana em termos de beleza. Estradas ventosas atravessam montanhas e vales, marcadas por córregos alimentados pela primavera, com florestas selvagens cheias de vida animal e pequenas seções de vinhedos e pomares”

 

 Taras Ochot

 

ADELAIDE HILLS GI: ENTRE ALTITUDE E ATITUDE

 

Por mais que a localização sugira um clima quente e extensivas plantações de Shiraz, aqui temos frio e uvas brancas como protagonistas da história. Adelaide Hills é definida por altitude, aspecto e atitude. Diversidade climática é a expressão mais correta, que se traduz em vinhos mais elegantes que a norma do país. A altitude chega aos 700m e junto dos diferentes aspectos (orientações dos diversos vales) mitigam o calor sugerido pela posição geográfica dessa região. Em janeiro, pleno verão, a temperatura média nos registros é 19ºC. Assim, o clima permite a concepção de vinhos de mais frescor, tensão e elegância. E como o saudoso Taras (na foto acima) disse-me, ele almeja interpretar os vinhos para ressaltar a elegância e feminilidade. Essa é a realidade de alguns dos seus vizinhos também. Já a atitude está na personalidade forte, criativa e audaciosa dos produtores.

 

“Muitas pessoas pensam em regiões quentes e vinhos ricos quando pensam no vinho australiano. Adelaide Hills, no entanto, é mais fria, mais alta e mais úmida, produzindo vinhos com acidez viva, álcool moderado, frutas frescas e grande foco”, garante David Lemire MW.

 

Foco e precisão encontrados não só nestas palavras de David Lemire MW mas como na Shaw + Smith, vinícola que o Master of Wine trabalha e produz alguns dos vinhos mais interessantes da região. A Sauvignon Blanc predomina em Adelaide Hills e conquistou sua popularidade por ser fácil, com caráter intenso mas nunca excessivamente pungente como algumas das versões neozelandesas. Shaw + Smith produz um dos melhores exemplares australianos e o vinho voa das prateleiras. Assim como um Chardonnay chamado M3 que é absolutamente fantástico. O M3 impressiona pela sua sofisticação, uso comedido e intelectual de madeira e trabalho de borras. Tem um lado mineral muito presente e moderada generosidade que flutua na boca trazendo raça e graça. Jancis Robinson em um de seus artigos no Financial Times corrobora ao afirmar que hoje procura alternativas à Borgonha nas zonas mais frias da Austrália.

 

O gênio indomável de Brendon, skatista e winemaker na Bk Wines, revela-se em leve ambivalência em seus vinhos. O Chardonnay Swaby (na foto abaixo) possuí o lado destemido de Brendon em forma de firmeza, espinha dorsal bem definida por sua acidez e mineralidade ainda que mostre sua natureza aconchegante e sedosa em fruta precisamente amadurecida, além de um toque de especiarias provindos de uso judicioso de madeira. É sedutor em sua generosidade de fruta fresca, que está sempre em harmonia com o conjunto todo.

 

Pinot Noir e Syrah - sim, denotando o estilo europeu e não a bomba de fruta que estabelece associações com Shiraz do novo mundo - também são estrelas. Pinot Noir nas mãos dos vizinhos e amigos Ochota Barrels e Gentle Folk dão um passeio no lado selvagem. A faceta natural, sem intervenções é regra desses que não seguem regras. Esses Pinots provocam por sua natureza terrosa, ricas notas de especiarias proveniente dos engaços, e leveza e transparência de vinhos não extraídos, mas sim infusionados, que nunca viram um dia de barrica nova sequer. Do outro lado da filosofia, temos o contraponto tanto ao naturalismo quanto ao uso de engaço e madeira usada nos vinhos de culto de Ashton Hills. Pinot à sério, status Grand Cru, de estrutura delineada e profundidade. De força sem peso. E para quem procura o “lado negro da lua”, Lucy Margaux de Anton van Klopper segue a direção extrema do naturalismo. Alumni de enologia da Universidade de Adelaide (ouvi que fui um dos melhores), quando a natureza – principalmente a sua – permite, esculpe alguns dos Pinots mais emocionantes do planeta. Entretanto, seu caráter selvagem o tirou do trilho nos anos mais recentes e alguns dos vinhos trazem consigo surpresas indesejadas em termos enológicos. Um triste caso de quando a filosofia e enologia medem forças, e quem acaba a perder é o consumidor.

 

O Syrah de clima frio de Taras Ochota é um dos meus favoritos e revela imensa intensidade e concentração de sabor. Mesmo com seus 12 graus de álcool e cor aberta e delicada. Ninguém diria que se encontra tanta informação ali. As notas clássicas de Syrah de clima frio explodem em um perfume intoxicante que salta do copo e toma conta do ambiente. São impressões exóticas e marcantes de incenso, pimenta, e suculentas azeitonas pretas interlaçadas à violetas recém colhidas.

 

“Nosso Syrah, por exemplo, não se parece com o que você esperaria da Austrália. É colhido cedo para preservar a acidez natural, e provém de um local fresco voltado a sul. Cachos inteiros são suavemente manuseados para uma curta fermentação selvagem. O intuito é capturar a sensação de colher violetas após um piquenique longo e preguiçoso de tarde. Um simples e delicioso prazer na vida”, disse-me uma vez Taras Ochota.

 

Tomando um desvio de estilo e categoria, não podemos deixar de mencionar os ricos espumantes de Kate Laurie na vinícola Deviation Road. Kate estudou enologia e viticultura em Champanhe, e utiliza do método tradicional e longo contato com as lias para conceber bolhas do mais alto nível.

 

Para finalizar nossa viagem, segue um breve roteiro de indicações de como aproveitar ao máximo a cena vibrante de gastronomia e vinhos da cidade de Adelaide.

 

Lost in a Forest (Adelaide Hills): preparados para uma pizza biodinâmica? Esse é o espaço de Taras e Amber Ochota. Aqui eles extravasam a criatividade em pizzas deliciosas feitas no forno a lenha com base em ingredientes produzidos por eles e alguns parceiros região, sempre orgânicos (ou mesmo biodinâmicos).

 

MotherVine: Wine bar dos Masters of Wine David Lemire e Michael Hill-Smith. Dispensa comentários sobre a carta de vinhos que é simplesmente sensacional.

 

East End Cellars: Uma seleção impressionante de pequenos produtores de vinho de identidade australianos e maravilhas do velho mundo. Também é fã de Borgonha, Bordeaux e Barolo à sério? Lá é seu lugar.

 

Hellbound: Abriu recentemente. Espere encontrar todos nomes citados e muitos outros pequenos e desconhecidos produtores australianos mas também raridades como Raveneau, Foillard, Overnoy, Rousseau e muito mais. O clima é de festa, melhor ainda se algum dos Skin Contact estiver por lá a comandar as mesas de som.

 

Africola: Comida Africana com um twist psicodélico. Carnes e vegetais grelhados e fumados, nada bom para os vinhos mas ótimo para a alma.

 

La Buvette e Proof também são ótimos wine bars para conhecer pequenos projetos.