O doce salgado do Sado

Fotografia: Fabrice Demoulin
Fátima Iken

Fátima Iken

O sabor é como um beijo de espuma salgada. Sente-se o mar na boca, numa espécie de onda gigante, aveludada e fresca, que desliza suavemente, deixando apenas um etéreo rasto de sal e mineralidade. Degustar ostras é todo um ritual que se ama ou se odeia. Quem ama, pega nelas delicadamente com as pontas dos dedos, inclina ligeiramente a cabeça para trás e ala com ela, com ou sem pingos de limão. Esta é a forma perfeita de as saborear. As do estuário do Sado têm fama mundial. São as chamadas “portuguesas” – ou melhor, “les portugaises”, já que o batismo é francês. Aqui, a produção ostreícola é marcada pelo ecossistema, a par dos graus de salinidadee doçura que fazem toda a diferença das ”Crassostrea Angulata”.

 

 

Os gregos já as achavam afrodisíacas. Este bivalve da família das “Ostreidae” não tem grande aspeto apelativo para uma imensa maioria. De corpo mole, esbranquiçado, viscoso e fechado numa concha rugosa calcificada é, contudo, uma enorme força da Natureza. Pela intensidade de sabor, pela textura e valor nutricional que ressuscita o ânimo de qualquer um. Casanova que o dissesse, já que comia dezenas destes hermafroditas ao pequeno-almoço, segundo consta. Ricas em zinco, o que fomenta a produção de testosterona, é bem capaz de haver um fundo de verdade nessa característica. A maneira como as comemos também poderá dar ideias mais perversas no que concerne à libido.


Já no século XIX, as nossas ostras – apesar de mais rugosas e não tão bonitas – competiam com as francesas de Arcachon, apelidadas “Ostrea edulis”. As “nossas” chamam-se “Crassostrea Angulata” e são uma espécie autóctone do estuário do Sado. Produto da biodiversidade dos bancos naturais, temperatura das águas, especificidade do “terroir” marítimo, grau de salinidade/doçura e tipo de fitoplanctôn produzido, concorriam com as francesas pelo teor de nutrientes que lhe conferiam um sabor peculiar apreciado pelos “gourmands” da altura, e ainda hoje, apesar de muito ter mudado desde então.
Nos últimos anos foi criado um programa para a recuperação, tendo em conta que a melhoria da qualidade da água e a diminuição da poluição seriam fundamentais para a defesa. Hoje em dia, “les portugaises” continuam a ter boa reputação na França onde, aliás, são cultivadas por um acaso da história.


A poluição acabou por ser uma machadada fatal que abrandou muito a produção a partir dos anos 70, condenando a espécie autóctone quase à extinção. Esse facto, aliado à doença das brânquias (que causou uma crise mundial nas ostras) levou quase ao fim da produção, sendo que os estuários do Tejo e Sado chegaram a ser os maiores bancos naturais de produção de ostra da Europa.
Por isso, nos últimos anos se insiste no renascimento da nossa ostra “angulata”, com vários produtores a cultivá-la em viveiros, contrariando a dizimação que sofreu.
Por obra do acaso, a “angulata” passou também a nascer em águas francesas desde que o navio Morlaisien, obrigado a ancorar em Arcachon quando uma tempestade lhe interrompeu a viagem com destino a Londres, deitou borda fora uma mercadoria de ostras que começavam a estragar-se. O facto é que muitas delas estariam ainda vivas e desde então começaram a reproduzir-se também em Arcachon, ficando nós sem a exclusividade. 
Existe também a ostra japonesa, conhecida por “Crassostrea gigas”. Originária do Pacífico tem demonstrado mais resistência e rendimento com produção massificada. Esta ostra já chegou também a Portugal, numa altura em que a “angulata” deixou de produzir, até porque a ostra japonesa na França foi atingida por uma bactéria desde 2008 e este país recorre à produção portuguesa. De todas elas, a japonesa será a menos interessante, mas cresce mais e depressa.
Mas há quem defenda que a “angulata” e a japonesa serão da mesma família, já que as ostras foram trazidas de forma aleatória, nos séculos XV e XVI, pelas caravelas portuguesas da Ásia. Os juvenis orientais agarravam-se aos barcos e, assim, aqui chegaram. Posteriormente, a adaptação ao ecossistema local teria originado esta espécie nativa.
Outras espécies conhecidas no mundo são a ostra “Kumamoto” (Crassotrea sikamea), parente da ostra do Pacífico mas mais pequena e de sabor mais doce, a ostra do Atlântico (Crassotrea virginica), por vezes chamada americana, pois é nativa das costas da América do Norte.


Especificamente no estuário do Sado, os bancos naturais de “Angulata“ conservam-se hoje com alguma integridade, ou seja, sem grandes interferências significativas de outras espécies. No local, existe uma espécie de ecossistema ideal e as ostras desenvolvem-se quase espontaneamente. Depois da queda a pique de produção nos anos 70, começa agora a reabilitar-se a produção, de forma a atingir um nível que, nos anos 60 era símbolo importante na economia nacional e local. 
A partir de 2011, após um longo período de quase total ausência de ostras no Sado, voltaram a ser detetadas as “angulatas”.
A Reserva Natural do Estuário do Sado lançou, aliás, em 2010 o programa “A Ostra Portuguesa – Recuperação de um Património”, de forma a criar um efeito mobilizador em defesa da ostra portuguesa e defesa da biodiversidade e conservação da Natureza.
A estimulação para a produção de ostra portuguesa e os esforços dos vários agentes envolvidos para a divulgar, nomeadamente os chefes de cozinha, com a aposta gastronómica junto do consumidor, tem sido determinante para o ressurgimento deste importante património natural.
A produção de ostra “Angulata” em Portugal faz-se ainda em Aveiro, no rio Mira, e no Algarve, na Ria Formosa.

 

As ostras do Sado

Estamos agora em plena Reserva Natural do Estuário do Sado. Na longa planura azul e verde confluem charcos e vegetação aquática, turfeiras, juncais e salgueiros. Isto para não falar no verdadeiro manancial de plantas halófitas, que pululam neste ecossistema particular.
Uma das produtoras que em muito tem contribuído para a reabilitação das ostras é Célia Rodrigues, à frente da Neptun Pearl, no Faralhão.
Apesar de na origem familiar estar o mar batido e as rochas escarpadas de Peniche, foi no sapal setubalense que Célia encontrou o modo de vida. A missão de vida é evitar a extinção da “Crassostrea angulata” e quem a vê, de galochas e chapéu de palha, sob o pico do sol no estuário do Sado, com água até à cintura, a cuidar dos “bebés de conchas” não pode deixar de lhe apreciar a energia.
Quando a ostra bebé atinge os 15 milímetros, é colocada em sacos com uma malha mais larga. De acordo com o tamanho, vai-se alterando a malhagem do saco.A malha vai alargando para elas crescerem e em todas as marés aproveita-se a descida para virar o maior número de sacos possível, que são pesados. No inverno, a tarefa é igualmente penosa pelo inverso: o frio e a chuva.
Aqui, as ostras são cultivadas segundo dois procedimentos: “fine de claire”, produzindo sobre o substrato, e no método convencional, de sacos sobre mesas ostrícolas. Depois, procede-se à depuração em Sesimbra, com ultravioletas e filtros biológicos certificados, onde ficam 24 ou 48 horas. 


Aproveitando o abandono dos tanques de piscicultura em Faralhão, a Neptun hoje produz ostras, plantas halófitas, caranguejo e camarão pequeno (camarinha). Sendo a água do estuário uma mistura doce e salgada, muito rica em matéria orgânica, base da alimentação fitoplânctica das ostras, marca o peculiar lado adocicado das ostras no que respeita às caraterísticas organoléticas.
Presentemente, a “angulata” representa 25% da produção da Neptun, mas a ideia é aumentar a produção. Se hoje a produção total de ostras atinge as 12 toneladas anuais, a meta de Célia são as 50 toneladas num futuro próximo, aumentando também a exportação. Atualmente, a maioria da produção tem como destino os chefes de cozinha, mas a ideia é que este pitéu chegue à população em geral. Em boa hora, porque são de comer e chorar por mais.
A produção distribui-se pelo Faralhão, com 16 hectares, e pela Herdade de Gâmbia, com cinco hectares já funcionais, mas ainda à espera de licenciamento, demora que mexe com a paciência de Célia. A herdade situa-se ao longo da Ribeira da Marateca, igualmente na Reserva Natural do Estuário do Sado.
O trabalho desta mulher de armas, ou melhor “mulher de ostras”, na recuperação da “angulata” tem sido meritório e, por sua iniciativa, resolveu também fazer protocolos com universidades de forma a incentivar a prospeção científica local.
As condições naturais no Sado são ótimas para o crescimento das ostras. Em águas francesas, estes espécimens demoram cerca de 18 meses a desenvolver-se e em Portugal leva apenas cerca de um ano para o mesmo resultado.

O mundo encantado das halófitas

A manhã já vai longa e sentimo-nos estafados só de observar Célia a pegar em sacos de ostras, a inspecionar as “fine de claire” ou a verificar as mesas. Antes, porém, nada como pegar na faca de ostras e cortar-lhes o músculo adutor para abrir o apetite. A mistura de doce-salgado conferem-se carácter. 
Altura ideal para a chegada do chefe Luís Barradas, um homem que se assume como cozinheiro, antes de chefe, conseguindo reunir o melhor de dois mundos: a inspiração asiática e a da cozinha portuguesa tradicional.
Apaixonado pelo ecossistema local, cozinha muito a partir da recuperação das plantas halófitas, que por aqui pululam no sapal. Vamos saboreando algumas, à medida que caminhamos apreciando a paisagem edénica do estuário.
O sabor salgado da gramata branca, da beldroega do mar, da salgadeira, da sarcocórnica perennis, do funcho marítimo ou da suaeda vera, ou valverde-dos-sapais, para além da mais conhecida salicórnia, têm tido bons efeitos em matéria de cozinha, resultando a aplicação na cura da proteína.


A sarcocórnia produz sal cristalizado com três vezes menos cloreto de sódio do que o sal de cozinha e uma das vantagens radica no facto de ter na composição, para além de sal, outros sais que também dão sabor ao alimento. A planta é também considerada uma fonte vegetal de boa qualidade nutricional para consumo humano, por conter quantidades consideráveis de nutrientes e compostos antioxidantes naturais.
Já as folhas do funcho marítimo são suculentas e muito aromáticas, sendo rica em vitamina C.
Saboreamos agora uma folha de gramata branca que tem um papel fundamental na dinâmica e composição do sapal, ajudando a configurar a paisagem de forma especial, a par do montado de sobro, dos amieiros, ulmeios e freixos, vegetação ripícola muito frequente entre manchas de pinheiros mansos.
Os lugares de interesse arqueológico, nomeadamente o concheiro neolítico da Barrosinha, a feitoria fenícia de Abul e os fornos romanos do Pinheiro são a prova que estamos numa zona que remonta ao Neolítico. E esses homens, aproximadamente há 4.000 anos a.C, comiam ostras…ou seja, uma iguaria milenar.

As melhores opções de “pairings”

Mas chegava agora o tempo de uma degustação (ver receita), a compasso das sugestões do chefe Luís Barradas na Herdade de Gâmbia, também produtor de vinho, um elemento fundamental para uma degustação de ostras em toda a plenitude.
A herdade, que propugna uma filosofia de sustentabilidade e recursos naturais, possui 30 hectares de vinha, com as castas Moscatel, Trincadeira Preta, Touriga Nacional, Castelão, Touriga Francesa, Aragonez, Alicante Bouschet e Syrah. Um projeto corporizado por Francisco Borba (que foi presidente da ViniPortugal) com o apoio enológico de Nuno Cancella de Abreu.
O melhor para combinar com uma ostra, a salinidade e toques iodados, será um branco bem seco, com boa acidez, mineral e levemente aromático. As notas de mineralidade casam habitualmente bem com as notas de iodo.
Um Extra Brut, efervescente e fresco, pode ser outra boa harmonização, valorizando a carne da ostra particularmente delicada entre abril e setembro, com a vivacidade de uma bolha fina.
Como para o vinho, a proveniência de cada região ou local oferece um sabor e gosto específicos às ostras, estas mais ou menos iodadas, mais ou menos salgadas, mais ou menos doces ou, até, com notas de avelã. Por isso, também nesse caso é preciso estar atento à escolha do vinho.


Um Xerez, por exemplo, pode ser uma boa combinação ou até mesmo um Moscatel, já que sublinha esse travo iodado, quebrando o lado untuoso da ostra. Os tintos, pelos taninos presentes, já são de evitar.
Se por acaso preferir uma ostra cozinhada (as ostras mornas num fundo de alhos franceses é um clássico) pode optar por um branco mais estruturado e complexo, com madeira, a funcionar com a gordura da manteiga e as notas vegetais.
Para além do sabor a mar e de uma refinada salinidade, que associadas à textura de veludo fazem desta iguaria uma sofisticada aposta gastronómica, as ostras têm outra vantagem. Sendo frescas (ou melhor, vivas) podem comer-se à vontadinha porque quase não têm calorias. 
Para além disso são um verdadeiro tesourinho nutricional, pois têm elevado teor proteico e elevados níveis de ferro, zinco, cobre, selénio, iodo, cálcio, vitamina D, vitamina B-12, vitamina A e ácidos gordos do tipo Ómega 3, possuindo quantidade comparável à da sardinha ou do salmão, ajudando assim ao bom funcionamento dos sistemas imunitário, circulatório e hormonal.
Motivos mais que suficientes para as celebrar, durante este verão.