Déjà Vu

Fotografia: reprodução da internet
Alexandre Lalas

Alexandre Lalas

Em 2012, o IBRAVIN, órgão que cuidava dos interesses de boa parte dos produtores de vinho do Brasil, tentou empurrar goela abaixo do consumidor uma salvaguarda para os rótulos nacionais. A grita foi geral, com restaurantes tirando o vinho de produtores brasileiros das cartas e consumidores esvaziando garrafas de produtos nacionais. Um acordo foi costurado, a ideia imbecil arquivada e a vida seguiu em frente. Mas o dano à imagem do vinho brasileiro foi enorme. Ano passado, quase às escondidas, foi tentado um novo golpe: uma espécie de barreira sanitária que praticamente inviabilizaria e importação de vinhos para o Brasil. Mais uma vez, a imbecilidade foi barrada pela repercussão negativa da medida em todo o setor. Mas, pelo visto, os órgãos que cuidam dos interesses do vinho brasileiro não aprenderam. No meio de uma pandemia, sem alarde, enviaram ao gabinete do ministro da cidadania Onyx Lorenzoni um documento assinado por três associações: Uvibra (União Brasileira de Vitivinicultura), Agave (Associação Gaúcha de Vinicultores) e FECOVINHO (Federação da Cooperativas Vinícolas do Rio Grande do Sul). No ofício, a mesma choradeira de sempre a respeito da suposta competição desleal com o vinho importado e um pedido para dificultar o processo de importação para o Brasil. O pleito está em análise do Ministério da Economia, que ainda não deu nenhum parecer a respeito. (confira a íntegra do documento no final da matéria)

 

Até aí, jogo jogado. Cada um cuida como pode dos interesses que defende. O problema é que para sustentar a tese que apresentaram, as empresas que assinaram o documento distorceram fatos e manipularam dados, o que de cara desclassifica completamente a iniciativa e mostra o caráter no mínimo duvidoso do pleito. Dados da Ideal Consulting mostram 67% do vinho comercializado no país em 2019 foi brasileiro, contra 33% do produto importado. Nesta conta, entram espumantes, vinhos finos e coloniais. No entanto, o documento mostra apenas uma pequena fração do quadro: aponta que entre os vinhos finos, apenas 11,9% do mercado é dos rótulos nacionais. Omite o fato de os espumantes nacionais representarem 70% do mercado. E não colocam na conta o vinho colonial.

 

A inconsistência dos argumentos defendidos no documento fica ainda mais flagrante quando as entidades que o formularam apresentam números a respeito da produção nacional. Aí, como num passe de mágica, a matemática muda de figura. Vale todo o tipo de vinho. A conta engloba os 79,1 mil hectares de vinha, as mais de 1,1 mil vinícolas e “100 mil pessoas” que fazem parte direta e indiretamente da cadeia vitivinícola. Ou seja: engloba espumantes, vinhos finos, coloniais e até mesmo suco de uva. É muita cara de pau.

 

E tem mais. Diz o documento: “o segmento vitivinícola atravessa um momento de expressiva dificuldade em razão do assédio dos vinhos importados, que têm demonstrado maior competitividade e, sobretudo, uma imagem positiva diantes dos consumidores brasileiro, que ainda mantém o conceito de que tudo que é importado é melhor”....

 

Ou seja: em vez de trabalhar decentemente para melhorar a imagem do vinho brasileiro, através de formações, degustações, feiras, palestras e campanhas, os burrocratas das três instituições querem ganhar a atenção do consumidor a fórceps, obrigando-os a engolirem os supostos preconceitos e a beberem o produto nacional.

 

Pior: faz isso, mais uma vez, ocultando dados. O documento esqueceu de apresentar um dado divulgado recentemente pela própria Uvibra: mesmo com as restrições provocadas pela pandemia de COVID-19, que fechou restaurantes, hotéis, vinícolas, o consumo de vinho fino brasileiro cresceu 30% em abril de 2020, em comparação com o mesmo período de 2019. Sabe quanto cresceu o malvado produto importado, que vai colocar na sarjeta 100 mil pobres coitados? Sete por cento. Sim, isso mesmo: 7%.

 

Portanto, num momento em que o vinho brasileiro atravessa uma ótima fase, conseguindo aos poucos um crescimento que tem tudo para ser sustentado, a ganância destes órgãos que deveriam zelar pela imagem do produto nacional ameaça colocar tudo a perder. As primeiras reações ao documento nas redes sociais não foram nada boas. Ameaças de boicote e palavras ofensivas aos diretores das instituições não faltaram.

 

Ressabiados com a péssima repercussão da malfadada salvaguarda de 2012, os produtores preferiram o silêncio. Para tentar defender a ideia, o presidente da Uvibra, Deunir Luis Argenta repete aos quatro ventos que “o documento foi mal interpretado”, “que não se trata de uma nova salvaguarda” e que a ideia é ter “igualdade de condições com o vinho importado”.

 

Diante da repercussão negativa, a Uvibra divulgou uma nota de esclarecimento e compromisso, na qual garante "pleitear apenas mecanismos de controle que coíbam o acesso ilícito de mercadorias ao Brasil, e que evitem o descaminho, o subfaturamento e a sonegação de impostos". Abaixo, a nota na íntegra.

 

 

O setor tem até alguma razão quando pleiteia um melhor tratamento do governo, especialmente nas questões fiscais, trabalhistas e sanitárias. Mas precisa enxergar que o inimigo do vinho brasileiro não é o importado. E sim a insana carga tributária, os problemas de logística e a pouca representatividade das campanhas para melhoria da imagem do produto nacional, entre outras questões. Defender os interesses do setor é justo e legítimo. Manipular dados e distorcer fatos para atingir o objetivo tem outro nome. E, definitivamente, tentar dizer ao consumidor o que ele deve beber de forma autoritária costuma justamente produzir efeito contrário.

Parece que não aprenderam nada...

 

Abaixo, a íntegra do documento enviado ao ministro Onyx Lorenzoni: