Eu não me chamo Eduardo!

Uma homenagem a Pio Boffa


 

Pio Boffa, mais do que uma referência para os vinhos do Piemonte, era uma excelente figura humana. Generoso, inteligente, espirituoso, dotado de um humor fino e preciso. Era também um excelente contador de histórias. Uma noite com Pio era certeza de grandes conversas acerca de inúmeros assuntos, risos e aprendizado. Em mais um abril despedaçado por esta pandemia que parece não ter fim e que tantas vidas já ceifou, Pio sucumbiu. Internado em Verduno, não resistiu às complicações provocadas pela Covid e faleceu. Como uma singela homenagem a este personagem tão especial, reproduzo abaixo uma coluna que escrevi em maio de 2010, e publicada na época no Jornal do Brasil, quando Pio esteve no Rio de Janeiro para um jantar promovido pela importadora Decanter:

 

Apesar da forte chuva e do tráfego intenso, o produtor italiano Pio Boffa, da vinícola Pio Cesare, conseguiu chegar ao aeroporto de Congonhas a tempo de embarcar no voo previsto, com destino ao Rio de Janeiro. Nem cinco horas da tarde eram ainda, e havia tempo suficiente para chegar o Rio, fazer o check-in no hotel em Ipanema e descansar um pouquinho antes de ir para o jantar com clientes da Decanter, importadora que traz para o Brasil os vinhos da Pio Cesare. O evento estava marcado para começar às 20h30, no restaurante D'Amici, no Leme. Mas, infelizmente para Pio, as coisas não saíram exatamente como deveriam...

 

Para começar, atraso na hora do embarque. E, para piorar a vida do já cansado italiano, fila. Dezenas de senhorinhas carregando bolsas imensas amontoavam-se no saguão do aeroporto a espera do chamado para embarcar. E a fila crescia. Pio não sabia, e nem poderia saber, que o brasileiro tem uma estranha mania: formar filas em salas de embarque de aeroportos. Por mais que os lugares sejam marcados e que o avião não decole sem que todos os passageiros estejam a bordo, o brasileiro não quer saber: basta dois ou três resolverem esperar de pé perto do portão de embarque que forma-se uma fila. Pio não sabia disso. E, vendo a fila formada, imaginou que o embarque já tivesse sido autorizado. E lá foi o italiano do Piemonte para o fim da fila. Que, evidentemente, não andava. E só foi andar já quase às seis, quando o embarque foi finalmente autorizado.

 

No avião, nada a reclamar. Voo tranquilo e tempo para um rápido cochilo. Afinal de contas, com o atraso para o embarque, já não haveria mais a chance de uma boa relaxada no hotel antes do jantar. O desembarque no Rio foi calmo e um motorista aguardava o italiano no desembarque do Santos Dumont. Eram seis e vinte.

 

No Rio, caos. Chuva fina, tudo parado no Aterro do Flamengo. E, para azedar ainda mais o humor de Pio Boffa, ar-condicionado no máximo, um motorista que não falava inglês (e muito menos italiano) e um carro que morria a cada dez metros. E a hora passando. Já passava das sete, nada de chegar o hotel. E o jantar marcado às 20h30. No Leme.

 

Depois de muito trânsito e morridas do carro, enfim, o hotel. O relógio marcava sete e meia. Ainda havia tempo para um banho rápido antes do jantar. Não deu. Ainda havia mais um imprevisto na conta do italiano. No balcão, na hora do check-in, mais confusão:

 

- Boa noite, disse o recepcionista do hotel.

 

- Boa noite. Tenho uma reserva aqui, meu nome é Pio Boffa, disse o italiano.

 

O recepcionista olhou no computador, olhou para Pio, olhou de novo no computador, e mandou:

 

- Tenho uma reserva aqui para o sr. Eduardo Pio.

 

- Bom, eu não me chamo Eduardo. Meu nome é Pio Boffa.

 

Sem entender muito bem o que estava acontecendo, um confuso recepcionista chamou o gerente. Que mal chegou e pediu o passaporte de Pio. O gerente olhou o passaporte, olhou para Pio, olhou para o computador. Sem saber o que fazer, perguntou:

 

- Nós aqui temos uma reserva marcada para Eduardo Pio. Por um acaso o senhor não teria Eduardo no seu nome?

 

Já sentindo o sangue piemontês ferver nas veias, Pio argumentou que não tinha sequer algum parente chamado Eduardo. Nova rodada de explicações por parte do staff do hotel, nenhuma solução. O italiano perguntou então se havia quartos disponíveis. Havia. Pio quis saber o preço e quase caiu para trás: o mais barato, na parte dos fundos do hotel, sem vista para a praia, custava uma pequena fortuna.

 

Cansado, irritado e, a esta altura, atrasado, Pio ligou para o dono da importadora. O problema é que, ao mesmo tempo em que o italiano voava para o Rio, o dono da Decanter ia para Florianópolis. E estava com o telefone desligado. Depois de muita insistência, Pio finalmente falou com Adolar Hermann, o dono da importadora. Explicou o que acontecia. Adolar falou com o gerente. Que, depois de uma rápida conversa, explicou a Pio que a agência responsável pela reserva fizera uma confusão e que o Eduardo Pio em questão era, de fato, Pio Boffa.

 

Desfeito o imbróglio, Pio subiu ao quarto, largou as bagagens e foi para o D'Amici. Lá, comandou um magnífico jantar, harmonizado com os fabulosos vinhos da Pio Cesare. O italiano apresentou os rótulos, contou a história da família e respondeu às perguntas dos convivas. No dia seguinte, refeito, ainda comandou um brunch para profissionais do mundo do vinho. Em seguida, voltou ao aeroporto e embarcou rumo a Turim. E prometeu voltar, em setembro. Com mais tempo, a família e de férias. Será bem-vindo. E se trouxer os vinhos que produz, tanto melhor...

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