A Herdade do Bom Gosto

Fotografia: Ricardo Garrido

Últimos capítulos do século XX. João, Paulo, Rita e Margaret miravam um conjunto de ruínas e vazios que compunham terras há muito abandonadas, em Albernôa, lá no coração do Baixo Alentejo. O que para muitos era apenas desolação em estado puro, para eles era mais. Significava a terra prometida sonhada desde muito antes, quando a família já estava no negócio do vinho, donos de uma próspera garrafeira no Algarve. Era ali o lugar. Onde com paixão, empenho e perseverança iriam construir um sonho. E ali fincaram raiz e ergueram a Herdade da Malhadinha Nova. Transformaram em solos capazes de dar vida a alguns dos melhores vinhos portugueses o que anteriormente era vazio e desolação. E o reconhecimento veio rápido, na forma de prêmios, altas pontuações da crítica especializada dentro e fora de Portugal. E em vendas.

 

A razão de tamanho sucesso é uma soma de sonhos, suor e planejamento. E mesmo com todos os confetes e reconhecimentos colecionados ao longo das últimas duas décadas, os Soares não param. A adega está a ser reformada e ampliada. Os 460 hectares da propriedade estão em vias de receber a certificação biológica. Um criterioso trabalho de investigação em microbiologia está em curso na Herdade. E no enoturismo, área que recebeu um grande investimento nos últimos anos, a Malhadinha simplesmente exagerou. O que já era espetacular virou fenomenal com a inauguração de quatro novas casas, na verdade ruínas que já existiam na casa e foram criteriosamente recuperadas, planeadas e decoradas com uma simplicidade sofisticada que só mesmo as pessoas dotadas de muito bom gosto conseguem fazer. Com as novas casas, em termos de enoturismo a Malhadinha mudou de patamar. Entrou para a Champions League.

 

"O que os sonhos têm de bonito é que muitas vezes não são verdadeiramente alcançáveis. Se há 20 anos íamos em busca de um sonho, a esta altura seguimos com a vontade de alimentá-lo. E muito embora o que já foi conseguido é muito mais do que poderíamos imaginar no início, no fundo a gente sempre quer continuar a conquistar. Mas não em termos de quantidade. E sim em qualidade, reconhecimento, reputação, visibilidade. Nosso sonho agora é continuar a evoluir e a fazer melhor", explica João Soares.

 

A Herdade recém completou 20 anos. E já passou por profundas transformações desde o pontapé inicial do projeto. Os sócios definem esta fase como ciclos de investimento, completados em média a cada 10 anos. Portanto, a Malhadinha está por encerrar o segundo destes ciclos. "Compramos a propriedade em 1998. No início, recuperamos a casa principal, criamos as estruturas agrícolas necessárias para toda a atividade de produção. Esta fase terminou com a conclusão da construção da adega em 2003. Na segunda fase de investimentos, apostamos na vocação hoteleira do projeto", detalha João.

Nesta etapa, o enoturismo concentrou o maior volume de recursos, mas a vinha e o vinho - atividade-fim da Malhadinha - não foi esquecida. "Compramos 40 novos hectares de vinha entre 2017 e 2018. Nosso objetivo é não precisar comprar uvas no futuro próximo. Queremos ter autossuficiência na produção e controlo total sobre o que produzimos", conta João. Com as aquisições de vinhas e mais alguns hectares plantados em volta das novas casas, a Malhadinha soma quase 80 hectares em vinhas. E a ideia é manter a produção nos atuais 16 toneladas por hectare, em média.

 

Além da compra e da plantação de novas vinhas, o negócio do vinho demandou outros investimentos recentes. A adega necessitou de obras para aumentar a capacidade e a funcionalidade. A conversão de toda a propriedade para as práticas biológicas também exigiu investimentos. E a decisão em tomar este caminho tem mais a ver com filosofia do que com tendências. "Não fizemos isso por uma questão comercial. Sequer iremos comunicar que os vinhos são produzidos através de agricultura biológica em nossos rótulos. Fizemos por convicções nossas. Buscamos sempre a qualidade. Queremos fazer melhor. E achamos que este é o melhor caminho", garantiu João.

 

Outro investimento que chama a atenção nas vinhas é o feito em investigação. A Malhadinha decidiu conhecer melhor e entender ainda mais cada centímetro de vinha que tem. E o caminho escolhido foi o da microbiologia. Com parcerias dentro e fora de Portugal, as equipes de viticultura e enologia da casa têm isolado leveduras nativas, as estudado e tentado levar para a adega as particularidades e singularidades do terroir da Herdade. " Estamos sempre em busca da excelência na viticultura e na enologia. A Microbiowines vem desta procura. Queremos buscar o caráter regional, valorizar a sustentabilidade, no campo e na adega. Entender e traduzir o nosso ecossistema e a nossa biodiversidade. Resolvemos investir no estudo e no entendimento das leveduras que temos cá em nossa propriedade. É o primeiro projeto de investigação que desenvolvemos aqui na Malhadinha", explica Margaret Soares, que toca o projeto.

Mas em que pese todas as bem-vindas novidades no campo da viticultura e da enologia, é no enoturismo que a Malhadinha investiu pesado nestes últimos anos. E pelo que se percebe ao visitar a propriedade e ao conhecer as novidades, não houve um mísero cêntimo desperdiçado. São quatro novas e lindas casas (Ancoradouro, Artes e Ofícios, Ribeira e das Pedras), construídas onde antes jaziam ruínas. Em cada uma delas, um estilo diferente. E não apenas na decoração. Mas no próprio conceito. " No Alentejo não é possível construir onde não havia uma casa, então nos concentramos em recuperar ruínas que tínhamos aqui em nossa propriedade. Essas casas já estavam cá muito antes de chegarmos. E cada uma delas tinha uma história pra contar. E nós quisemos de certa forma buscar inspiração em toda essa memória existente nas casas", conta Rita Soares. O projeto de todas as casas é da arquiteta Joana Raposo. "Ela buscou através de linhas minimalistas,  aliar a simplicidade, que transmitem a cultura a tradição alentejana, com um pouco do nosso tempo. Portanto, conseguimos criar um espaço que é simultaneamente tradicional e contemporâneo", completa Rita. 

 

Cada casa é abordada de uma forma personalizada. Não apenas na decoração ou na arquitetura. Mas também em termos cromáticos, na estrutura oferecida e até mesmo nos cheiros e sensações que cada uma oferece. Se o diabo mora nos detalhes, Rita e o pessoal da Malhadinha olharam com olhos de águia para cada simples elemento. A Casa do Ancoradouro representa a terracota, em homenagem à argila que domina os solos em volta da propriedade. O pavimento construído de forma artesanal pelo Mestre António de Beringel é simplesmente irresistível. Ali são sete suítes de 100m2 cada uma, com direito a terraços privativos. Nas zonas comuns, cozinha, sala de estar, piano. Na área exterior, piscina e uma vista de tirar o fôlego das planícies alentejanas.

A Casa das Artes e Ofícios é inspirada nos mestres e artesãos locais. O verde domina o espaço, onde ficam cozinha, biblioteca e duas suítes de 25m2. Mas são os objetos de decoração, todos produzidos por artistas da região, em especial o lustre da sala, que chamam a atenção de quem visita o espaço.

A Casa da Ribeira fica muito próxima à Ribeira de Terges, que corta toda a Herdade da Malhadinha. Por conta disso, a decoração é calcada em tons azuis, homenagem à água. E todo o ambiente convida ao relaxamento. A casa conta com cozinha, sala de estar, piscina e três suítes com 75m2 cada.

Por fim, a Casa das Pedras, a de estilo mais contemporâneo das quatro, é quase um convite ao romantismo de uma temporada a dois. Foram construídas em concreto pigmentado, com uma cor palha. A decoração é minimalista. E as quatro suítes de cerca de 100m2 - todas elas separadas umas das outras - contam com piscina privada. De tirar o fôlego.

Com a construção destas quatro unidades, este ciclo da Malhadinha se encerra. Até porque não se pode ir além. " Estamos numa reserva ecológica nacional, numa zona de proteção, portanto, não se pode ter mais construções novas aqui, o que é fantástico e nos garante para sempre esta paisagem. Os investimentos daqui pra frente que teremos que fazer na Malhadinha serão de consolidação, voltados sempre para incrementar ainda mais a qualidade dos vinhos e do hotel, o que requer um investimento permanente", aponta Paulo Soares.

 

Pois quem diria que tanto vazio e desolação, vinte anos depois, se tornaria num dos maiores empreendimentos de vinho e turismo de Portugal? A família Soares sim. Trabalhando em conjunto, sempre alinhados e com uma inesgotável vocação para transformar sonhos, suor e planeamento em sucesso, eles chegaram lá. E que venham os próximos 20 anos.

 

TEXTO Alexandre Lalas e Nuno Pires