Donnafugata

Fotografia: Divulgação
Marcel Miwa

Marcel Miwa

A Sicilia é a maior ilha do Mediterrâneo e sua posição estratégica, entre o continente africano, o Oriente Médio e a Europa, fez do lugar um entreposto, não apenas comercial mas principalmente cultural, ao longo das diferentes eras. Fenícios, gregos, romanos,  árabes, entre outros povos ocuparam o território siciliano deixando suas marcas até hoje, onde o vinho se insere. 

 

Retornando ao tempo presente onde a mudança climática é um dos grandes temas para se falar da qualidade dos vinhos, é pacífico que um dos caminhos para se esquivar dos problemas advindos do clima é apostar em variedades autóctones, uma vez que são castas, teoricamente, melhores adaptadas às condições locais, entendendo um extremo climático apenas como uma leve oscilação. Algo que uma variedade estrangeira sofreria mais para superar. 

 

E aí está parte da explicação para o hype que os vinhos sicilianos vivem neste momento: Grillo, Nerello, Zibibbo, Nocera, Carricante… são exemplos de variedades nativas da Sicília que dão origem a alguns dos vinhos que estão entrando no circuito dos enófilos mais aficcionados. 

Embora a história da vinícola Donnafugata não seja tão extensa, nascida em 1983, a história da família Rallo, proprietária da vinícola, está na 5ª geração à frente da produção de vinhos sicilianos. Giacomo Rallo, ao lado de sua esposa, Gabriella, fundaram Donnafugata em Contessa Entellina, região retratada na obra Il Gattopardo, de Tomasi di Lamoedusa. O próprio nome Donnafugata (senhora em fuga) foi inspirado na mesma novela. Para fechar o círculo, Gabriella Rallo, a pioneira do vinho siciliano e com participação ativa na vinícola, propôs ao ilustrador Stefano Vitale desenhar os rótulos dos vinhos. “No começo da conversa Vitale comentou não desenhava rótulos de produtos, apenas fazia ilustrações para livros e artigos jornalísticos. Foi um processo longo, mostrei nossa inspiração em Gattopardo e afinidade com o trabalho dele”, comentou Gabriella Rallo, em um almoço em sua vinícola em Contessa Entellina. Em 1994, o Donnafugata La Fuga foi o primeiro vinho de Donnafugata a adotar a marcante imagem dos traços e cores de Vitale.   

 

Hoje, Donnafugata tem dois quartéis-generais: Contessa Entellina, como principal vinhedo e base de pesquisa de técnicas de viticultura, e Marsala, na antiga vinícola da família Rallo, onde os vinhos repousam e maturam até o momento do engarrafamento. Giuseppe Milano, chef de viticultura do grupo comenta que sempre adotaram práticas de viticultura sustentável, sem uso de químicos, mas não querem ficar presos a uma certificação orgânica. “Estamos com muitos estudos sobre micorrizas, fungos subterrâneos que ajudam no metabolismo da videira, e berçário para recuperar 19 variedades autóctones sicilianas; isso já nos afasta do uso de químicos no campo”, comenta Milano. 

O viticultor também explica que como Donnafugata nasceu na década de 1980, em meio à crise dos vinhos de Marsala e Pantelleria, o risco da vinícola que hoje possui 60 hectares de vinhedos em Entellina foi amenizado pelo plantio de variedades locais e algumas internacionais, com boa aceitação no mercado global. Giuseppe Milano falou que foram muitos os aprendizados ao longo destas quase quatro décadas, “desde maior cobertura foliar dos cachos, para não queimar as peles das uvas mais delicadas ou menos adaptadas), até identificar o melhor horário para a colheita, entre 4h e 8h da manhã”. No passado chegaram a fazer colheitas noturnas, porém notaram que as uvas ainda chegavam mornas mesmo quando colhidas à meia-noite.  

 

Uma vez apanhadas, as uvas de Entellina seguem para Marsala; as uvas brancas na forma de mosto e os tintos já fermentados. “Nossa cave em Marsala está escavada no solo de tufa, que conserva naturalmente a temperatura em 15ºC e 85% de umidade”, condições consideradas ideais para o élevage dos vinhos, diz Antonio Rallo, filho de Giacomo e Gabriella. A cave em Marsala foi eleita em 2022 um dos 50 melhores destinos enoturísticas no mundo. Antonio Rallo é, ao lado de sua irmã José, CEO de Donnafugata. Além de agrônomo e enólogo, Antonio é o atual presidente do Consorzio Sicilia DOC e já foi presidente da principal associação de vinícolas italianas, UIV. 

 

Além da base em Contessa Entellina, Donnafugata possui vinhedos e produz vinhos na ilha de Pantelleria e em 2016, quando Antonio e José assumiram a empresa após o falecimento de Giacomo, e com a devida autorização de Gabriella, expandiram seus domínios para Vittoria e o Etna. Antonio Rallo explica através de um dilema siciliano esta busca por vinhedos na parte oeste da Sicilia (Vittoria e Etna). “Se até na tradicional receita de bolinhos de arroz empanado em frito há divergência, no leste chamam de Arancina e no oeste Arancino, imagina nas condições para se fazer vinhos”. 

Destaques de Donnafugata produzidos em Contessa Entellina*:

 

90

Donnafugata Anthilia 2021

Rótulo existente desde a fundação da vinícola em 1983. Com predomínio da Catarrato (chamada localmente de Lucido) é um ótimo branco de entrada de linha, sem passagem por madeira. Nariz limpo e fresco, com pera, nectarina e lima, sem excesso de exuberância. Na boca segue na linha da elegância, com álcool comportado e integrado, textura fluída e natural. Final com damasco e flores brancas. Fácil de beber e sem excessos.

 

91

Donnafugata Vigna de Gabri 2021

Produzido desde 1987. Predomínio de Ansonica, com Catarrato, Chardonnay, Sauvignon Blanc e Viognier. 85% do vinho fermenta em concreto e 15% fermenta em barris de carvalho (6 meses). Na taça, boa complexidade com pera, jambo, maçã, flores secas, amêndoa. A delicada cremosidade ajuda na boa estrutura do vinho, que abre toques de pão tostado e marzipã na boca. No final a acidez cresce, refrescando a boca e trazendo mais referências cítricas. Ótima companhia para pescados grelhados. 

 

90

Dolce & Gabbana Donnafugata Tancredi 2017 

Rótulo que foi migrado nesta safra de Donnafugata para a linha desenvolvida em conjunto com a grife Dolce & Gabbana. O assemblage de Cabernet Sauvignon, Nero d’Avola e Tannat estagia em barricas francesas por 12 meses, mais 36 meses na garrafa. Nariz com frutas negras maduras, ervas secas (tomilho e alecrim) e violeta. Na boca os taninos estão firmes, com alguma austeridade, com toque salgado dando contraponto à fruta madura. Final com alcaçuz e grafite.

 

92

Espumante Donnafugata Millesimato brut 2017

Produzido desde 2009, o espumante é um exemplo da capacidade técnica de viticultura e enologia da vinícola. Com meros 11,8% e excelente acidez, a mescla de Pinot Noir e Chardonnay estagia com as leveduras por 36 meses antes do dégorgement (método tradicional). No nariz a Chardonnay dita o estilo, com cítricos, pera e maçã, bem integrada às notas de panificação (brioche, amêndoa e suspiro). Cremosidade reforçada pelas finas borbulhas e equilibradas pela acidez do conjunto. Limpo, denso e fresco. Às cegas, dificilmente seria associado à uma região de clima quente. 

 

 

Gula Recomenda

94

Donnafugata Mille e una Notte 2018

Um dos ícones tintos da vinícola e com nome inspirado no conto homônimo. A mescla de Nero d’Avola, Petit Verdot, Syrah e outras variedades em pequena participação estagiam por um ano em barricas francesas e mais 24 meses na garrafa antes de sair ao mercado. A fruta negra aparece em diversas matizes, frescas e maduras, com ervas e flores secas e alcaparra. Os tostados da madeira indicam a vinificação e escola bordalesa na vinificação, confirmada pela textura sedosa dos taninos. O frescor é suficiente para segurar a estrutura compacta e firme. Deve se integrar melhor nos próximos anos e evoluir ao longo dos próximos 10 anos. 

 

 

 

Pantelleria

 

A ilha de Pantelleria é de origem vulcânica e fica no meio do caminho entre a principal ilha da Sicilia e a costa tunisiana. É um destes raros locais para a produção de vinhos e, não ao acaso, chamado de zona de viticultura heróica, como nos Açores, Mosela ou Priorato. Sujeito aos fortes ventos que circulam nesta parte do Mediterrâneo, os vinhedos de Zibibbo (Muscat de Alexandría) são conduzidos rentes ao solo, com as folhas protegendo os cachos de uva, forma batizada de alberello pantesco. O vento mais conhecido, o Sirocco, vento que sopra do Saara, pode chegar em Pantelleria aos 95 km/h. 

 

Nos vinhedos mais expostos à costa são colocadas cortinas de palha que funcionam como velas de barcos para cortar as rajadas de vento mais intensas e, tal como se vê no Douro, terraços e patamares para plantar as parcelas de vinhas foram erguidos com pedras, aqui com pedras vulcânicas da própria ilha, que é tombada como Patrimônio Cultural da humanidade pela Unesco. 

 

Dos menos de 400 hectares de vinhedos que atualmente existem em Pantelleria, Donnafugata é proprietária de 68 hectares e uma das poucas que sempre apostou na produção do passito de qualidade. “Foram muitos testes e experimentações até chegarmos ao ponto atual”, diz Antonio Rallo, que tem nos vinhedos de Pantelleria um carinho especial. Hoje boa parte das videiras tem idade superior aos 40 anos, com algumas parcelas centenárias e são mais de 30 clones de Zibibbo identificados e cultivados. 

 

Desde a primeira safra de Ben Ryé, o passito ícone de Pantelleria, em1989, também foram muitas as técnicas e formas de vinificação experimentadas. “Hoje sabemos que é melhor ter as uvas dos 16 vilarejos onde cultivamos todas no ponto ideal de maturação, em vez de trabalhar com diferentes pontos de maturação”, exemplifica Rallo. Parte das uvas segue para fermentação direta a as colheitas mais precoces são colocadas para secar ao sol, em esteiras, processo chamado de apassimento. Após um mês, as uvas concentram seus açúcares a até 650 gramas por litro (inicialmente estão com 220 gr/l) e em seguida são desengaçadas à mão. Os grãos são adicionados em três frações ao vinho base para refermentar lenta e continuamente até atingir o equilíbrio do vinho final, com cerca de 200 gramas de açúcar residual e 14% de álcool. Um processo trabalhoso, artesanal e sem atalhos.  

Destaques de Donnafugata produzidos em Pantelleria*:

 

91

Donnafugata Moscato di Pantelleria Kabir 2021

Uma interpretação mais leve, fácil e floral do passivo de Pantelleria, com metade da doçura residual do Ben Ryé (aqui com 107 gr/l). Nariz com flor de laranjeira, abacaxi fresco e lichia. Doçura delicada, funciona melhor na harmonização por contraste com pratos salgados que como um vinho de sobremesa, graças a boa acidez. Limpo, fresco, nada enjoativo e ao mesmo tempo leve. Ótimo aperitivo.

 

Gula Recomenda

97

Donnafugata Passito di Pantelleria Ben Ryé 2020

Nesta safra o teor de açúcar residual está em 192 gramas por litro. Na taça mostra grande concentração, com toques que lembram os vinhos de Tokaji. Banana passa, manga, mel e damasco no nariz, com excelente equilíbrio entre doçura e acidez, ambos em níveis altos. Mesmo com esta intensidade os aromas seguem cristalinos e no longo final aparecem complementos de laranja em compota e menta fresca. 

 

 

 

Etna

 

Donnafugata chegou ao Etna em 2016, sob gestão de Antonio e José Rallo. Das 133 contrade (vinhedos) mapeadas, a vinícola possui parcelas em sete. Os principais são Montelaguardia, onde está instalada a vinícola, à 750 metros de altitude, e Marchesa, à 700 metros de altitude. “Apesar de Marchesa ser um pouco mais baixo, as uvas amadurecem depois de Montelaguardia, pois está em um anfiteatro protegido do excesso de calor”, comenta Rallo. Donnafugata escolheu parcelas de vinhedos nas faces norte e nordeste do vulcão, as zonas mais tradicionais e protegidas dos ventos quentes que atingem as encostas voltadas para o sul. 

 

O solo, uma mescla de rochas e cinzas vulcânicas, oferecem bom vigor (além do componente mineral) e explica a boa densidade de videiras por hectare. Dessa forma, estimula-se a concorrência entre as plantas e as raízes buscam nutrientes em maior profundidade. A condução das videiras também segue uma arquitetura local, chamada alberello etneo. “Ela começa como um cordão simples e depois é deixada ao léu para se desenvolver. Um tanto caótico, é verdade”, comenta o viticultor Giuseppe Milano. 

 

Dentro do modelo consagrado de vinhas velhas, além da idade média avançada das videiras (acima de 50 anos), as castas estão misturadas em cada parcela, sendo comum encontrar as três principais variedades, as tintas Nerello Mascalese e Nerello Capuccio, além da branca Carricante, todas misturadas no campo. O fascínio em torno dos vinhos do Etna estão não apenas na carga mineral dos vinhos, mas na expressão elegante, em especial da Nerello Mascalese, muito comparada à Nebbiolo. Para Antonio Rallo, ainda que as contrade mais elevadas hoje estejam mapeadas a 1.000 metros de altitude, é certo que há um horizonte para subir mais nas encostas, conforme seja necessário a busca de um clima mais fresco. 

 

Destaques de Donnafugata produzidos no Etna*:

 

92

Dolce & Gabbana Donnafugata Etna Bianco Isolano 2020

100% Carricante que estagia 10 meses em tanques de inox e pequena parte estagia em barricas usadas. Na taça, traz notas de melão, abacaxi, pedra molhada e terra. Na boca aparecem casca de limão e ameixa amarela, com boa mescla ácido-salgada que dá boa tensão ao conjunto. Final salino, fresco e elegante.

 

92

Donnafugata Dea Vulcano 2020

Apesar de ser a linha de entrada entre os tintos do Etna da vinícola, a expressão é superlativa. Mescla de Nerello Mascalese com pequena parte de Capuccio, vinificada e estagiadas quase na totalidade em tanques de cimento. Na taça frutas vermelhas frescas (morango e framboesa) e flores do campo no primeiro plano, com toque de ervas frescas e canela. Um estilo que remete à Pinot Noir, com taninos delicados, frescor no primeiro plano e sutis notas de folhas secas e pedra molhada. Conjunto vivo, integrado e sem arestas.  

 

 

Gula Recomenda

94

Donnafugata Etna Fragore Contrada Montelaguardia 2019

100% Neretto Mascalese de uma única contrada (equivalente a um cru), Montelaguardia, e estagiado por 14 meses em barricas usadas. Nariz com frutas vermelhas maduras, alcaçuz, pimenta preta, pólvora e flores secas. Denso na boca, com taninos muito finos e compactos e com acidez que cresce ao final. Toques austeros de minerais (ferro, tinta e grafite) e final longo e intenso. 

 

Gula Recomenda

95

Donnafugata Etna Contrada Marchesa 2017

Se Montelaguardia mostra uma faceta mineral e austera da Nerello Mascalese, Marchesa segue por outro caminho. Nariz etéreo, com flores, ervas e frutas frescas (cereja vermelha e morango). Há ainda toques de almíscar, terra e toffee. Na boca a acidez está no primeiro plano e dá vivacidade e fluidez ao vinho, levantando um toque cítrico na boca. A fruta mantém seu perfil elegante e fresco, com mais flores e ervas. Um tinto sedutor, acetinado e que está em seu momento de esplendor.  

 

Nota da redação: 

Os vinhos Donnafugata são distribuídos no Brasil pela World Wine. Preços e safras disponíveis podem ser consultados no site da importadora