Harmonização Picante

Fotografia: reprodução da internet
Guilherme Corrêa

Guilherme Corrêa

Quando a coisa esquenta de verdade, com qual vinho podemos apagar o fogo? O que é dito por aí é que os vinhos menos alcoólicos e com mais frescor são os ideais. Será que a ciência por trás das boas harmonizações está de acordo com isso?

 

QUAL PICANTE?

Em primeiro lugar, é bom sabermos que a sensação de picante é deliberadamente uma agressão de algumas plantas e frutos aos seus devoradores pouco relevantes para a perpetuação destas espécies. Ao longo de sua evolução, uma parte do género de plantas Capsicum, que inclui pimentões e pimentas como as malaguetas (no Brasil), os piripiris (em Portugal e Moçambique), os gindungos (Angola), habaneros (México), tabasco (EUA), etc., além da pimenta-do-reino, esta última do género Piper, se mostrou melhor adaptada por desenvolver substâncias protetivas como a capsaicina e a piperina, respectivamente.

A capsaicina das pimentas vermelhas e amarelas, sobretudo, é extremamente irritante aos herbívoros e mamíferos, cujos dentes molares destroem as suas sementes, impedindo-as de germinarem depois. Ao contrário, estas sementes passam pelo sistema digestório dos pássaros intactas, e as espécies de Capsicum são assim dispersadas mais longinquamente. Não coincidentemente, os “receptores de potencial transitório vanilóide” tipo 1 (TRPV1), que geram estímulos agressivos de nocicepção nos herbívoros e mamíferos, e sinalizam ao cérebro que há na região afetada algo similar a um calor extremo ou um dano abrasivo, nos pássaros não causam nenhum tipo similar de impulso perante à capsaicina. As regras da natureza são belas e implacáveis!

Além da capsaicina (8-Metil-N-vanillol-trans-6-nonenamido), um vanilóide campeão na agressividade aos destruidores de sementes, incluindo nós humanos; e do alcaloide piperina da pimenta-do-reino, algo picante e também amargo, há outras substâncias que botam fogo no palato, ainda que com objetivos e intensidades nem sempre iguais. O gingerol e o shogaol do gengibre e da galanga tailandesa, que usam os mesmos canais nociceptores da capsaicina são um exemplo, ou o isotiocianato de alila da raiz-forte Meerrettich alemã ou do wasabi japonês, e mesmo a alicina dos alhos e cebolas crus. Não gosto de sofrer, mas adoro tudo isso aí.

 

MECANISMO DA CAPSAICINA

Para sabermos como combater o fogo causado por alimentos ricos em capsaicina, precisamos perceber como ela interage conosco e quais as suas fraquezas. Ao colocar uma garfada picante na boca, as moléculas do composto ligam-se a uma estrutura das células nervosas chamada canal iônico e faz com que esse canal se abra (o TRPV1). Outras moléculas correm pelo canal e inundam a célula nervosa, fazendo com que ela dispare e envie o sinal de agressão para a medula espinhal e depois para o cérebro. Tudo acontece em uma fração de segundo. A resposta do nosso organismo a esta ativação de nociceptores vem em forma de vasodilatação, vazamento vascular e inflamação. Ou seja, não há de fato qualquer queimadura química causada pela capsaicina, ou mesmo um aumento de temperatura considerável na zona afetada, apenas uma reação do nosso corpo à molécula ardente. É um efeito neurológico e não químico, como é o caso da adstringência dos taninos. Por isso mesmo, passados aproximadamente 15 minutos (ou alguns mais em casos comidas demasiadamente picantes), o palato está recomposto e íntegro, ou como diz-se tecnicamente, dessensibilizado da capsaicina.

Atualmente, há muitos estudos científicos em torno desta substância orgânica e seus efeitos na saúde, mormente as suas aplicações farmacêuticas, como combate à obesidade, poder analgésico e antisséptico, etc. A capsaicina pura é um composto extremamente pungente, hidrofóbico (não se dissolve em água), incolor e inodoro. Dessa forma, é praticamente inútil lavá-la com água, essa na verdade irá espalhar o ardor para partes do palato antes não afetadas. A sua solubilidade maior ocorre em solventes orgânicos como o álcool etílico, o éter ou clorofórmio, ou então em óleos e gorduras (lipossolúvel). Será uma mera coincidência os gordurosos abacates ou “sour cream” sempre acompanharem as delícias incandescentes mexicanas?

Muito interessantemente, os nossos nociceptores da capsaicina são distraídos na boca pela presença reconfortante de açúcares. A mais famosa escala de medição do grau de ardor das pimentas, desenvolvida nas primeiras décadas do séc. XX pelo farmacêutico americano Wilbur Lincoln Scoville, basea-se justamente num teste organoléptico em que provadores são confrontados com os extratos de cada pimenta diluída em concentrações diferentes de água com açúcar, até acharem o ponto em que o seu ardor é anulado. Os açúcares ligam-se aos receptores mais rapidamente que a capsaicina, para a nossa salvação em situações extremas em um restaurante indiano ou tailandês, basta levar um torrão no bolso.

Os ácidos, por sua vez, ajudam a neutralizar a base alcalina da capsaicina. Bebidas ou sucos ácidos de fruta servidos bem frios aportam essa sensação refrescante e diminuem a atividade do alcaloide. Por falar em temperatura, um artigo publicado por Simon e Araujo no Journal of General Physiology explica que os nociceptores TRPV1 também acusam possíveis agressões de ácidos e de temperaturas acima de 42°C na boca e na face, e que a presença de álcool abaixa esse limiar para algo em torno de 34°C, a temperatura aproximada da língua. Ou seja, embora o álcool realmente dissolva - mas não neutralize - a capsaicina e lave-a do palato, o primeiro efeito é que ele deixa os receptores mais sensíveis ao seu estímulo, e bem por isso bebidas alcóolicas servidas mais frias podem amainar o seu impacto.

UM BREVE RELATO DE COMO LAVAR (OU ESPALHAR) A CAPSAICINA

Impossível de esquecer uma das minhas aventuras gastronômicas mais incríveis, ainda que mais dolorosas, no período que estive estudando em Londres para obter o Diploma na prestigiosa escola Wine & Spirits Education Trust. Fiz uma programação de visitar os restaurantes destacados de cada etnia, naquela cidade que congrega um pedaço de cada país do mundo. Ao chegar no melhor restaurante pelos guias locais em comida da província de Sichuan, na China, optei, como de praxe, por um menu de degustação completo, e ao ser questionado sobre alguma restrição alimentar ou sensibilidade ao picante, fui mais uma vez taxativo ao dizer “não”. Mas com Sichuan não se brinca, e naquela noite quente de verão londrino, a minha decisão incauta foi reforçada pela equivocada escolha de me refrescar com a cerveja local, ao invés de uma sábia escolha de um vinho adequado para a batalha. 

A sucessão de pratos foi absolutamente incrível, carregada de perfumes, da elétrica pimenta de Sichuan e de Capsicum em todas as suas formas, e quanto mais eu comia e me regozijava com aquela viagem de sabores, mais eu suava e bebia cerveja, nutrido de uma falsa expectativa de que algo fresco e carbonatado como aquela Tsing Tao Premium 1903 iria contribuir de alguma forma a apagar as labaredas de fogo que saiam da minha boca, pelo nariz e pelos poros da pele. Já encharcado e vermelho, escuto o conselho da minha atendente de mesa chinesa, com um sorriso contido que amalgamava pitadas de vingança e dó: “cuidado com esse próximo prato”. Ao dar a primeira garfada no “pig’s ear in a chef special chilli oil”, logo após sentir a textura que tanto amo das orelhinhas de porco, fui acometido por um crescendo de picante a explodir internamente, e desesperado sem saber até onde aquela sensação iria, esvaziei um copo inteiro de cerveja por cima. O desenlace deste que parecia ser o último gole da vida foi sair correndo para o banheiro e entrar com a cabeça inteira debaixo da torneira de água fria. Ao olhar este tolo no espelho, minha face e meu pescoço ostentavam vergões vermelhos, uma reação ao excesso de capsaicina e à escolha totalmente condenável da harmonização bebida-prato.

Voltei para a mesa como se nada tivesse acontecido, não deixaria aquela simpática chinesinha ganhar de mim, desse experiente sommelier e glutão inveterado, a guerra. Pedi então um copo de um Chenin Blanc da África do Sul, com 13,5° de álcool, dotado de cortante acidez e um toque de açúcar residual, e logrei chegar vivo e exultante ao final da refeição, ainda que reflexivo quanto às eficácias tão diferentes da cerveja e do vinho para aplacar o ardor da capsaicina.

 

O QUE DIZEM OS LIVROS DE VINHO

De um modo geral, a literatura sobre harmonização vinho-alimento apregoa que devemos combater o fogo com bebidas pouco alcóolicas, um pensamento simplista baseado na ideia de que ninguém apaga um incêndio com uma mangueira expelindo álcool. Ao revisar a minha biblioteca sobre o assunto e mais umas pesquisas na internet, com raríssimas exceções, o que se lê e se repete é que bebidas com teores mais baixos, carbonatadas como cervejas e espumantes, dotadas de frescor e servidas mais frias, e às vezes com açúcares residuais, são a escolha adequada contra assaltos de capsaicina. 

Uma exceção importante é o livro Taste Buds and Molecules: The Art and Science of Food, Wine and Flavour do canadense François Chartier, que expõe com embasamento a necessidade de álcool (até 14°GL) para dissolver a capsaicina e acalmar o calor, além de abordar com muito detalhamento as interações com outros elementos dos vinhos e de uma série de ingredientes e pratos. Da mesma forma, a escola italiana de sommeliers defende atualmente que o picante deve ser contraposto nos vinhos pela sua graduação alcoólica de forma a solubilizar a capsaicina e dirimir os seus efeitos, pela baixa temperatura de serviço para criar um efeito contrário ao pseudocalor gerado como estímulo pela substância, e finalmente pela doçura residual que tende e anular o picante. 

 

TESTES

Como grande parte dos livros e profissionais concorda que o açúcar - e no caso particular dos bons vinhos, na forma de açúcar residual da fermentação (ou da dosagem final dos espumantes) - é um atenuador dos estímulos da capsaicina, resolvi desta vez realizar nossos testes focado no efeito do álcool, o grande ponto de discórdia entre a esmagadora maioria que defende bebidas de baixo teor, e alguns poucos, como eu, que defende o uso do álcool para lavar a capsaicina.

 

Para isolar o máximo de variedades possíveis, cozinhei uma massa bastante neutra e adicionei no final uma dose cavalar de “peperoncino” seco italiano moído. O “peperoncino” seco é muito bom neste sentido, pois ao contrário de muitos molhos picantes que trazem um mundo de vinagre e aromas às receitas, estes pequenos nervosos conferem apenas doses explosivas de capsaicina pura. Tudo pela ciência!

Provei atentamente a massa com uma cerveja tipo Pilsen de 5°GL, com um vinho tinto de taninos extremamente dóceis de 12,5°GL, e exatamente o mesmo vinho adicionado de álcool etílico puro até perfazer 14,5°GL. A cerveja, conforme experiências anteriores de extremo sofrimento relatadas acima, cumpriu o seu papel de espalhar a capsaicina por toda a cavidade bucal, afinal, com aproximadamente 95% de água na composição, não é capaz de solubilizar a nossa molécula ardente. Interessante que a sua temperatura de serviço por volta dos 5°C, até cria uma ilusão de frescor nos primeiros segundos, mas depois o picante assume o protagonismo com uma força brutal. François Chartier, inclusive, defende em seu livro que o dióxido de carbono aumenta a sensação de ardor da capsaicina.

Com o vinho adulterado para 14,5°GL, o primeiro impacto é justamente o contrário da cerveja. Mesmo cautelosamente servido a 16°C, seu ataque é quente, inflama na boca, e possivelmente por isso muitas pessoas acreditam que o caminho do álcool alto é equivocado para pratos picantes. Contudo, passados estes primeiros segundos de “combustão”, a capsaicina começa a se dissolver no álcool e a ser lavada do palato com mais eficácia. Ao contrário da cerveja, este vinho limpou e não espalhou a causticidade para todo lado.

Mas, tal como na vida, no mundo das harmonizações o segredo também está no equilíbrio. O “compromise” ou consenso está em ter álcool a mais, o suficiente para solubilizar a capsaicina, e álcool a menos para evitar o seu impacto explosivo na entrada da boca, ao tornar os nociceptores TRPV1 muito sensíveis às moléculas do picante. Por isso o vinho de 12,5°GL foi o campeão dos experimentos. Pelas experiências anteriores deste sommelier, esta faixa entre 12,5° e 13,5° é a melhor para trabalharmos com pratos escaldantes. Tintos com até 14°GL podem ser arrefecidos para melhorarem o seu desempenho, conforme discutimos. E brancos com excelente acidez e um toque de açúcar residual, como nos fabulosos Rieslings “off-dry” alemães ou em alguns Vinhos Verdes (sem gás carbônico), têm o seu sucesso garantido quando a sua aventura gastronômica arder em chamas.