O canário na mina de carvão

Não restam dúvidas sobre o papel do homem nas alterações climáticas. Quais os efeitos no setor dos vinhos e por que razão é tão importante avaliá-los?

Fotografia: reprodução da internet
Jamie Goode

Jamie Goode

 

A publicação do último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) é de leitura deveras preocupante. As alterações climáticas, ou caos climático, como alguns preferem (concordo com eles - enfatiza a urgência e imprevisibilidade das mudanças que enfrentamos) são uma grande ameaça para a humanidade. Neste contexto, parece um pouco leviano pensar em vinho, mas, em alguns aspetos, o vinho é útil, pois atua como uma espécie de sistema de alerta precoce. Isso ocorre porque as uvas são muito sensíveis às mudanças de clima. O famoso viticultor Richard Smart descreveu a viticultura como o canário na mina de carvão das alterações climáticas, referindo-se à velha prática dos mineiros que transportavam consigo, nas descidas para o subterrâneo, um canário numa gaiola: a ideia é que, se o canário caía para o lado, havia presença de gases tóxicos e os mineiros deveriam sair.

 

O IPCC é um órgão das Nações Unidas nascido para avaliar a ciência relacionada com as alterações climáticas. Reúne cientistas relevantes que trabalham para produzir relatórios firmemente baseados na evidência científica, o que é importante, porque se trata de um campo altamente contencioso, em que os riscos são elevados. Embora as provas das mudanças climáticas sejam indiscutíveis, durante muito tempo, vários céticos recusaram-se a aceitar a crença consensual de que era a atividade humana na queima de combustíveis fósseis a força motriz por trás do aumento das emissões de gases com efeito de estufa (principalmente dióxido de carbono, mas também metano) que, por sua vez, resultavam numa tendência de aquecimento do clima. Quando escrevi o meu primeiro livro, Wine Science, em 2003, lembro-me de partilhar o capítulo sobre mudanças climáticas e vinhos com um amigo. Ele achou que era bom, mas sugeriu que eu mudasse o teor, para suavizar a linha de argumentação. Perguntei por que razão e respondeu-me que muitos leitores americanos discordariam de que os humanos são os culpados, atribuindo as mudanças no clima aos ciclos naturais que ocorreram ao longo de muitos milhares de anos.

 

O último relatório do IPCC, que faz parte do Sexto Relatório de Avaliação (relatório completo previsto para 2022), é intitulado ‘Alterações Climáticas 2021: A Base da Ciência Física. Contribuição do Grupo de Trabalho I para o Sexto Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas’. Este relatório põe de lado qualquer noção de que aquilo a que assistimos hoje é a repetição de alguma tendência cíclica. A evidência é clara de que é a atividade humana a responsável por essa mudança e o relatório mostra quais as implicações para o futuro e como dependem dos nossos esforços, agora, para reduzir as emissões de gases com efeito de estufa.

 

Desde o período entre 1850-1900, o clima do globo aumentou pouco mais de 1ºC. Pode não parecer muito, mas é significativo. Com base em dados anteriores e no uso de modelagem sofisticada, são explorados vários cenários para o futuro. O último Relatório de Avaliação do IPCC, de 2013, afirmou que o limite seguro para o aquecimento era 1,5ºC e que, além desse valor, seriam acionadas mudanças climáticas significativas e imprevisíveis, com efeitos catastróficos. No Acordo Climático de Paris de 2015, muitos países pressionavam para a adoção de medidas com vista a manter o aquecimento abaixo de 1,5ºC e, em 2018, outro relatório mostrou uma enorme vantagem em mantê-lo em 1,5ºC e nunca acima de 2ºC. Para que isso acontecesse, seria necessário que as emissões de CO2 fossem reduzidas a metade até 2030 e as emissões líquidas zero fossem alcançadas até 2050. Este novo relatório do IPCC diz que estamos a caminho de atingir um aumento de 1,5ºC até 2040, mas, se nada for feito agora, poderemos atingir esse marco em 2030.

 

Regiões mais quentes enfrentam maior risco

 

As implicações para a viticultura são significativas. Atualmente, temos uma situação em que as vinhas do mundo são amplamente plantadas com variedades que apresentam bom desempenho nos climas das respetivas regiões em que crescem.

 

As videiras têm melhor desempenho num clima onde amadurecem à medida que o outono se aproxima e as temperaturas começam a cair. Isso permite que completem a maturação lentamente, para que as uvas sejam colhidas em bom estado sanitário e em equilíbrio entre as diferentes componentes. Por isso, a campanha perfeita prefere tempo seco durante a floração e a vindima, e que não chova muito durante o período de maturação (o que pode causar doenças).

 

Além disso, devemos ressaltar que a videira não sente o clima, que é a média de muitos anos. Sente o tempo do ano específico. Como as castas são plantadas em climas adequados, as boas colheitas são aquelas em que o tempo é médio. Grandes desvios da média - isto é, estações muito mais quentes ou mais frias, ou mais úmidas do que o normal ou, em alguns casos, muito secas - causam perdas de qualidade. Os eventos climáticos extremos costumam ser prejudiciais. As alterações climáticas estão causando mais desses eventos climáticos extremos e também um aumento de anos considerados atípicos.

 

As regiões mais quentes são que correm maiores riscos. Em Portugal, o Alentejo enfrenta dificuldades, especialmente no sul da região. O Douro também enfrenta desafios significativos com os anos secos e quentes: normalmente esta é uma região que pode atingir temperaturas muito elevadas e reduzida precipitação. Na ausência de boas chuvas de inverno, as vinhas secas podem ficar muito estressadas por um verão muito quente.

 

Globalmente, algumas regiões mais frias até beneficiaram de temperaturas mais altas: Mosela, na Alemanha, é um exemplo (embora várias localizações estejam agora a experimentar calor excessivo em algumas campanhas), e o sul da Inglaterra aqueceu o suficiente para tornar a viticultura uma atividade lucrativa, daí a expansão do vinhedo inglês. Mas há muito mais perdedores do que vencedores em face das alterações climáticas.

 

Como poderão responder os viticultores? Existem medidas de longo e curto prazo que podem ser tomadas. No curto prazo, ajustes como mudança de sistema de condução, redução do tamanho da canópia, uso de redes de sombra e aplicação de protetor solar (caulino) são opções em regiões mais quentes. A gestão da superfície foliar na zona da fruta é importante, evitando expor as uvas à luz solar direta. A cobertura entrelinhas pode ajudar a preservar a água e a incorporação de matéria orgânica e o uso de culturas de cobertura também podem ajudar os solos a reter mais água e evitar que o solo aqueça em demasia.

No médio prazo, a mudança nas variedades plantadas oferece uma forma de mitigar o aumento das temperaturas. Algumas castas são mais bem adaptadas a climas quentes, embora isso apresente problemas quando uma ou duas variedades estão fortemente associadas à identidade de uma região. Portugal tem a sorte de produzir vinhos de lote como norma na maioria das regiões e, portanto, ajustar a mistura varietal não exigirá uma mudança dramática, como poderia ser substituir a Pinot Noir na Borgonha, por exemplo.

 

Mudar vinhas para altitudes mais elevadas é outra forma de contrabalançar as tendências de aquecimento, mas requer tempo, muitos recursos e a presença de terrenos mais elevados. Talvez no futuro as vinhas mais procuradas no Douro sejam as de altitude, centenas de metros acima dos presentemente valiosos terrenos perto do rio.

 

Se ao menos as alterações climáticas fossem um problema de aumento lento das temperaturas, seria algo que os viticultores poderiam planejar e gerir. Talvez o maior problema seja a crescente imprevisibilidade, o que torna a viticultura realmente difícil. Ciclos precoces podem trazer a estação de crescimento para o período de geadas na primavera. A ocorrência de granizo é desastrosa para as videiras. E talvez, no futuro, o planejamento financeiro tenha que ser adequado para menos campanhas realmente boas e talvez uma desastrosa a cada década. É uma perspectiva preocupante.