Bem-Aventurada seja a Sopa

Fotografia: Luiz Henrique Mendes
J.A. Dias Lopes

J.A. Dias Lopes

Afirma-se ultimamente que o Homo sapiens evoluiu quando aprendeu a cozinhar – e não porque começou a caçar e a usar ferramentas, como se pensava no tempo de Charles Darwin (1809-1882). Quem sustenta a tese é o antropólogo norte-americano Richard Wrangham, professor da Universidade de Harvard. Ele a explicou no livro “Pegando fogo - Por Que Cozinhar nos Tornou Humanos” (Zahar Editores, Rio de Janeiro, 2010). Chamado pelos seguidores de “ícone da ciência que estuda a humanidade de maneira totalizante”, Wrangham está absolutamente seguro da sua conclusão.

 

E qual teria sido o primeiro prato que o ser humano comeu? A resposta é dada por vários estudiosos, entre os quais o especialista em arqueologia e escritor gastronômico italiano Rosario Buonassisi, no livro “Ricette Mondiali di Zuppe & Minestre (Arnoldo Mondadori Editore, Milão, 1999): foi a sopa. Esse caldo reconfortante e nutritivo, atualmente enriquecido com carnes, peixes e frutos do mar, legumes, verduras, massas ou outro alimento sólido, surgiu quando o ser humano começou a fabricar utensílios de pedra e a descascar e triturar os ingredientes alimentícios, para misturá-los com água e torná-los mais apetecíveis. Portanto, faz sentido a frase cunhada pela Marquesa de Pompadour (1721-64), amante de Luís XV, da França: “Pedir uma sopa, às vezes, é sinal de inteligência”.

 

Buonassisi chama nosso primeiro prato de protossopa, por ser cru e, portanto, consumido frio. No receituário moderno, sobrevivem receitas equivalentes. A mais famosa é o gazpacho andaluz (tomate, pepino, pimentão, alho, vinagre, azeite e água gelada e croutons, ou seja, pequenos pedaços de pão, fritos ou assados), típico da região espanhola da Andaluzia. Há também o salmorejo de Córdoba (tomate, alho, migas de pão, azeite, vinagre, sal e às vezes pimentão verde), na mesma região e país; a panzanella da Itália (tomate, pão duro, cebola, aipo, manjericão, vinagre, azeite e sal), característica da Toscana; e a vichyssoise (alho-poró, cebola, batata, nata ou crème fraîche e caldo de galinha, aromatizada com bouquet garni), que o chef francês Louis Diat teria inventado em 1917, quando comandou a cozinha do Ritz-Carlton de Nova York. Repita-se: todas são cruas e frias.

 

O prestígio mundial do gaspacho foi catapultado por um grande filme de 1988: “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos”, sucesso de crítica e bilheteria, do diretor espanhol Pedro Almodóvar. No seu elegante apartamento em Madri, uma mulher chamada Pepa Marcos, vivida na tela pela atriz Carmen Maura, desespera-se por ter sido abandonada pelo amante que deixou apenas um recado de rompimento na secretária eletrônica. Enquanto procura saber o motivo da separação, recebe a visita da melhor amiga. A mulher estava apaixonada por um terrorista xiita e temia ser presa pelo relacionamento. A ex-esposa do amante, aquele do recado, também aparece.

 

Acabou de passar 20 anos em uma instituição para doentes mentais. Mais tarde chega o filho do amante, acompanhado da noiva. Os dois procuram um imóvel para alugar. A moça, sem saber, bebe o gazpacho andaluz cheio de soníferos que Pepa preparou no liquidificador para dar ao amante. Todas as mulheres se encontram à beira do histerismo, ou melhor, da completa maluquice. A propósito: o gazpacho andaluz era inicialmente um prato circunscrito aos camponeses. Eles o saboreavam por ser fácil de elaborar e gostoso de comer. Além de matar a fome, reunia todos os nutrientes necessários para quem ganha a vida no duro trabalho rural.

 

A mais curiosa receita fria, porém, é portuguesa. Chama-se sopa de cavalo cansado. Feita com vinho tinto, ocasionalmente gema de ovo, canela em pó, mel e pão, por muito tempo desfrutou da fama de fortificante natural. Rústica e básica, era saboreada pelos camponeses do norte de Portugal, quase sempre no desjejum, em busca de forças para o trabalho diário; e pelas crianças que iam à escola, igualmente de manhã. Em alguns lugares o nome do cavalo era trocado pelo do burro, em louvor da boa reputação desse animal para o trabalho pesado. Em outros locais chamavam-na apenas sopa de vinho.

 

Hoje, a receita perdeu boa parte do prestígio popular que desfrutava, até porque os médicos se opuseram a ela. Condenaram-na porque contém álcool e pelo fato de ser oferecida às crianças. Culparam a sopa de cavalo cansado pelo baixo rendimento escolar dos jovens de antigamente. Os portugueses também costumavam ministrá-la aos equinos. Davam-na aos cavalos e burros que puxavam carruagens e outros meios de transporte nas viagens longas. Isso acontecia quando os condutores não encontravam no caminho animais descansados para substituir os que tinham e precisavam continuar a andança.

 

Na comunidade autônoma da Galiza, na Espanha, vizinha do norte de Portugal, também havia sopa de cavalo cansado para seres humanos e “caballos, mulas y burros que servían de motor en el movimiento de arados, trilladoras y otros implementos que necesitaban tracción animal”, segundo um documento. Em ambos os países ibéricos, a receita podia variar um pouco. Ocasionalmente, o vinho incorporava gema de ovo emulsionada. Nesse caso, lembrava vagamente uma gemada. 

Hoje, apesar do prestígio, as sopas frias constituem uma categoria minoritária. A maioria é cozida e servida quente, inclusive no Brasil. O best-seller nacional “Dona Benta – Comer Bem” (Companhia Editora Nacional, São Paulo, 2003, 75ª edição), por exemplo, traz 69 receitas de sopas, canjas e caldos. Todas são quentes. A sopa deixou de ser fria entre 3 milhões e 1,5 milhão de anos atrás, quando o homem dominou o fogo e passou a cozinhar os alimentos. Se bem que a protossopa continuou a existir, pois faltavam recipientes impermeáveis à água e resistentes ao fogo. Assim, por muito tempo nossos ancestrais se limitaram a assar os alimentos nas brasas, sobre pedras incandescentes ou cobertos por cinzas quentes.

 

Segundo Buonassisi, outro método de preparação consistia em abrir um buraco no chão, em solo impermeável, e ali despejar os ingredientes juntamente com água. Depois, acrescentava-se pedras fumegantes, fechando-se a boca com peles ou cestos revestidos com betume. Vestígios arqueológicos encontrados na região do Colorado, Estados Unidos, indicam que o povo pré-colombiano Anasasi utilizou cestos impermeabilizados com betume para elaborar sopas antes do aparecimento dos recipientes de cerâmica, algo idêntico ao ocorrido na Anatólia, Turquia, em torno do ano 9.000 a. C. Depois é que vieram os tachos de cobre, bronze e ferro. Na Escócia, havia uma técnica de cozimento parecida. Retirava-se o estômago de um grande animal e dentro se preparava um ensopado.

 

Mas a argila dos buracos no chão, o cheiro enjoativo do betume e o fedor das peles e vísceras muitas vezes deixavam o alimento repulsivo. “Portanto, é lógico acreditar que, a fim de tornar mais (...) apetecíveis aqueles ensopadões, se começasse a aromatizar e temperar com as ervas aromáticas e as especiarias oferecidas em abundância pela Mãe Natureza”, conclui Buonassisi.

 

Iniciada a era dos alimentos cozidos ou assados – e a necessidade de transmitir às demais pessoas os seus fundamentos culinários -, nasceram as primeiras receitas. Para completar, o fogo amaciava os alimentos, facilitando a mastigação e a digestão. O melhor exemplo era a sopa. E aí, conforme o Buonassisi, encaixa-se a teoria do etnólogo francês André Leroi-Gourhan (1911-1986): despendendo menos esforço para comer, nossos ancestrais tiveram reduzidos os músculos dos maxilares e a espessura do osso frontal do crânio. Com isso, aumentaram o volume interno da caixa craniana e do cérebro, acelerando a evolução natural do Homo sapiens. 

 

Um particularíssimo caso de sopa quente é a de pedra (uma pedra, toucinho, orelha de porco, morcela, feijão-mulatinho, batata, couve, coentro, pimenta-do-reino e sal), preparada pelos portugueses. Chegou ao Brasil em uma historieta popular protagonizada por Pedro Malazartes, que na descrição de Luís da Câmara Cascudo, no “Dicionário do Folclore Brasileiro” (Global Editora, São Paulo, SP, 2001), “é figura tradicional nos contos populares da Península Ibérica”. Encarna o trapaceiro astucioso, enganador e invencível. Em Portugal, em vez de Pedro Malasartes, o personagem da sopa de pedra, especialidade turístico-gastronômica da cidade de Almeirim, no Ribatejo, é um frade mendicante. Tirando isso, a história se repete.

 

Cansado e faminto, Malasartes bateu na porta da casa de uma mulher avarenta e pediu alguma coisa para comer. Ela respondeu que não tinha nada para dar. “Sendo assim, vou fazer uma sopa de pedra”, reagiu Malasartes. A mulher encheu-se de curiosidade. Então, o simpático trapaceiro pegou uma pedra no chão e lavou-a bem. Depois, pediu uma panela de barro e um fogão para cozinhar. “Ora, essas coisas eu tenho”, respondeu a mulher. Malasartes acendeu o fogo, colocou a pedra na panela, encheu-a de água e, quando começou a chiar, provou a comida de mentira. “Está ótima, mas ficaria melhor com um pouco de gordura”, ponderou. Desafiada e intrigada, a mulher trouxe um pedaço de toucinho.

 

Nesse momento, Malasartes solicitou-lhe uma orelha de porco, a seguir morcela, feijão-mulatinho, batata, couve, coentro, pimenta-do-reino e sal, sendo prontamente atendido. A receita tornou-se enriquecida. Concluída a sopa, o trapaceiro ofereceu uma porção à mulher, que ficou encantada. Na panela, restou apenas a pedra, que Malasartes lavou outra vez e guardou no bolso. “Carrego-a comigo para fazer outra sopa no dia em que precisar enganar outra velha boba”, explicou. E fugiu em disparada.

 

Enquanto as sopas frias são consideradas gourmets, as quentes têm prestígio comunitário e familiar. Congregam as pessoas em casa, estreitam laços de convivência e afeto. “E é difícil encontrar uma família que não cultive pelo menos uma querida receita de sopa que muitas vezes reuniu seus membros à mesa, em torno de uma terrina fumegante”, anota o jornalista Celso Nucci, na obra “O Livro das Sopas” (Editora Harmonia, São Paulo, 1992. Outra característica do prato é que, quando recebe ingredientes substanciosos, pode ir sozinho à mesa da refeição.

 

A voz do povo se diverte com a palavra sopa. Qual o motivo? Talvez por ter sido originalmente prato banal. Deu-lhe o povo acepções divertidas: “ser sopa” indica facilidade de fazer alguma coisa; “dar sopa” equivale a deixar-se enganar; “viver às sopas” significa à custa de alguém. Vale lembrar também uma sentença do epicurista e gastrônomo francês Brillat-Savarin, autor do livro “A Fisiologia do Gosto”, publicado em 1825: “A sopa é a primeira consolação do estômago em estado de necessidade”.

 

 

GAZPACHO

 

Serve 4 porções

 

INGREDIENTES

.3 pimentões vermelhos sem pele e sem sementes

.2 pimentões verdes sem pele e sem sementes

.1/2 cebola média picada

.1 tomate sem pele e sem sementes

.1 unidade e meia de pepino japonês sem casca e sem sementes

.50 ml de óleo de oliva

.50 ml de vinagre branco

.40 ml de suco de limão

.Croûtons a gosto

.Sal e pimenta-do-reino moída na hora a gosto

 

PREPARO

1.Separe meio pimentão de cada cor e corte-os em brunoise (pequenos cubos). Reserve para a montagem.

2.No liquidificador, ponha os pimentões que sobraram, a cebola, o tomate e o pepino.

3.Adicione metade do óleo de oliva, o vinagre, o suco de limão e bata tudo muito bem. Coe em um chinois ou peneira fina e tempere com sal, pimenta e o óleo de oliva restante.

4.Leve à geladeira e sirva somente quando estiver bem gelado.

5.Para a montagem, arrume alguns croûtons e os cubos de pimentão (reservados) no centro dos pratos, com a ajuda de um aro. Despeje cuidadosamente o gazpacho gelado em volta.

6.Sirva imediatamente.

 

Receita preparada pelo chef Ernestino Gomes, da Tasca do Zé e da Maria, de São Paulo, SP.

 

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SOPA DE CAVALO CANSADO

Rende 1 porção

 

INGREDIENTES

.250ml de vinho tinto (prefira vinho verde)

.1 gema de ovo batida, até ficar bem emulsionada

.1 pitada de canela em pó (opcional)

.Mel a gosto

.Pão a gosto, esfarelado ou cortado em  pedaços (prefira broa de milho)

 

PREPARO

1.Em uma tigela redonda, coloque o vinho.

2.Em seguida, adicione o mel e a gema de ovo batida.

3.Coloque a canela, misture tudo muito bem e junte o pão.

4.Antes de consumir, deixe a sopa umedecer o pão.

 

Receita preparada pelo chef Ernestino Gomes, da Tasca do Zé e da Maria, de São Paulo, SP.

 

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SOPA DE PEDRA

Rende 8 porções

 

INGREDIENTES 

.1 kg de feijão vermelho

.1 Orelha de porco

.1 Chouriço de sangue

.1 Chouriço de carne

.150 g de toucinho ou bacon

.750 g de Batatas

.2 Cebolas

.2 Dentes de alho

.1 Folha de louro

.Coentros qb

.Sal e Pimenta

 

PREPARO 

1. Se o feijão for do ano, não necessita ser demolhado. Se for duro, põe-se de molho durante algumas horas.

2.Escalda-se e raspa-se a orelha de porco.

3. Leva-se o feijão a cozer em bastante água juntamente com a orelha, os chouriços, o toucinho, as cebolas, os alhos e o louro. Tempera-se com sal e pimenta. Se for necessário juntar mais água, sempre a ferver.

4.Quando a carne estiver cozida, retira-se e introduzem-se na panela as batatas cortadas aos quadradinhos e os coentros picados.

5. Deixa-se cozer a batata. Assim que se retirar a panela do lume, introduzem-se as carnes previamente cortadas aos bocadinhos e uma pedra bem lavada, que deve ir na terrina.

 

Receita original do restaurante “Toucinho”, de Almeirim, em Portugal, preparada pelo chef Ernestino Gomes, da Tasca do Zé e da Maria, de São Paulo, SP.