Entrevista: quem faz o Guia Michelin?

Gwendal Poullennec é o diretor geral do Guia Michelin e falou com exclusividade à Gula.

Marcel Miwa

Marcel Miwa

Como está o cenário gastronômico brasileiro no padrão Michelin?

Gwendal Poullennec: Quando decidimos fazer uma nova edição

regional do guia, isto significa que identificamos um potencial

nos restaurantes daquele país. Esta é uma decisão unicamente do

guia Michelin. Infelizmente tivemos que parar durante a pande-

mia, mas agora voltamos. E observar que dobraram o número de

restaurante bi-estrelados é empolgante. Isto significa que há um

potencial real e o cenário está evoluindo. Para nós o que conta é a

qualidade do restaurante não a quantidade de restaurantes. É ne-

cessário muita consistência, artesanato, personalidade e produtos

incríveis para crescer como os restaurantes brasileiros cresceram.

E, sobretudo, há diversidade, o que indica maturidade do mercado.

 

O que significa diversidade de restaurantes para você?

GP: Quando falo de diversidade, não falo apenas de etnias, ou da

qualidade da cozinha italiana, japonesa ou francesa nas cidades.

Para mim vai muito além disso. Premiamos alguns restaurantes

japoneses no Brasil e cada um deles tem um sotaque distinto, um

sabor e personalidade diferentes. No final, cada um foi capaz de

proporcionar uma experiência diferente, em alto nível. E isto in-

dica que há mais entusiastas pela gastronomia que entendem e

sustentam cada uma destas propostas.

 

Ao menos é um mercado onde o trabalho humano não

será substituído com muita facilidade, concorda?

GP: Concordo. A gastronomia é feita por pessoas, seja no comando

dos restaurantes seja do outro lado da mesa, com o comensal. É

um cenário simbiótico, onde o conhecimento e exigência do co-

mensal levanta o nível e desafio da brigada do restaurante.

 

Em 2024, pela primeira vez o Michelin atribuiu a estrela verde a

restaurantes brasileiros. Quais os aspectos para avaliar a sus-

tentabilidade em um restaurante? É um tema contemporâneo e

as regras e critérios ainda não são pacíficos.

GP: É um bom ponto, e por isso não divulgamos nosso critério.

Explico: estamos criando uma dinâmica, é um critério que vai evo-

luir a cada ano. E não se trata de marcar um “x” em um gabarito

com uma série de itens. O espírito do restaurante deve estar em

torno da sustentabilidade, com a vontade de melhorar e ser ino-

vador ano após ano. Fazemos tudo isso com base na experiência

vivida pelos inspetores. E, claro, cruzamos informações, para estar

seguros que não é apenas publicidade ou um discurso. Para tanto

é necessário transparência por parte do restaurante e saber trans-

mitir seus valores. Apenas para deixar claro, não somos auditores,

não vamos inspecionar a lixeira do restaurante e verificar o peso

e quantidade de produtos descartados, por exemplo. E acredite, é

perceptível quando um chef fala que é sustentável, mas a experi-

ência de uma refeição não diz isso. Principalmente comparado aos

seus pares. Não há como fazer uma lista e requisitos sobre isso.

 

 E quando esta premiação estará consolidada?

GP: É um longo caminho. Hoje identificamos que cada restaurante

tem desafios diferentes em relação à sustentabilidade. Um restau-

rante em uma fazenda no interior tem diferentes desafios que um

restaurante no centro de uma metrópole. Como comparar? Esta-

mos de cabeça aberta para identificar quem são os verdadeiros

pioneiros neste tema. E quando um chef me pergunta o que ele

deve fazer, eu respondo: converse com seus colegas, desenvolvam,

troquem experiências, aprendam mutuamente e, importante, co-

muniquem o que fazem, façam o tema aparecer. Este é apenas o

primeiro passo que estamos dando e os restaurantes estão super

receptivos. Os premiados estão dispostos a aprimorar cada míni-

ma prática no restaurante. Até porque o que hoje nós considera-

mos sustentável amanhã pode parecer algo ínfimo, e é esta dinâ-

mica que queremos; uma busca diária pela excelência.

 

Além deste novo espectro que o guia está cobrindo, na

forma tradicional de avaliação dos restaurantes, os critérios fo-

ram se adaptando? Especialmente após a pandemia, a informa-

lidade ganhou espaço, seja no serviço, nos acessórios e até na

concepção dos pratos (muitos pratos para compartilhar, para se

colocar, no centro da mesa e utilizar as mãos).

GP: Acredito que muitas vezes criam um mito em volta do Mi-

chelin, criam uma aura que internamente nunca foi encampada.

Acreditam que os inspetores vão observar a marca dos talheres ou

a forma que os garçons caminham pelo salão. Nós focamos na qua-

lidade da comida e ponto. Apenas para exemplificar, no Paul Bocu-

se, o mais longevo restaurante a sustentar as três estrelas (desde

1965), se quiser ir ao banheiro, você precisa sair do restaurante e

ir em uma casinha de madeira que parece um celeiro. Vale a pena

refletir sobre isso e não se trata das comodidades e aparatos, sem-

pre foi sobre comida.

 

Quando falamos de estrelas, bib gourmands ou recomen-

dados, os critérios sempre foram os mesmos?

GP: Esta é uma das razões porque temos muitos restaurantes es-

trelados pelo mundo, porque focamos na comida, independente

da cultura ou estilo, isto nos dá alguma objetividade para falar do

tema. Você pode ver um restaurante alcançar as três estrelas ape-

nas com ingredientes locais, baratos e frescos. Novamente, há o

mito de que nossos avaliadores vão aos restaurantes e derrubam

os guardanapos para ver o tempo que algum funcionário percebe-

rá o ato e o substituirá (risadas); não faz sentido. Hoje em dia até

os restaurantes mais ambiciosos estão informais. A grande maio-

ria dos estrelados pelo mundo sequer usa toalha de mesa, e não

nos importamos com isso, este não é um fator para uma estrela. O

primeiro restaurante que atribuímos as três estrelas no Japão não

tinha banheiro! (Sukiyabashi Jiro)

 

Então sofisticação não é um fator para conquistar estre-

las? Não é necessário um grande investimento para um restau-

rante alcançar este reconhecimento?

GP: Claro que em muitos casos são restaurantes sofisticados, mas

outras vezes são simples e acessíveis. Esta não é uma métrica. Não

é preciso ingredientes, móveis e acessórios caros para se ter um

restaurante estrelado. A qualidade pode estar no simples. Na Chi-

na premiamos um restaurante que serve apenas dumplings. No

México, logo antes de vir ao Brasil, uma taquería conquistou uma

estrela; um restaurante que serve um prato, e um “prato de rua”

e que custa poucos dólares. Vale o mesmo para um bar de tapas.

São locais autênticos, que servem algo único. E há a experiência

contrária: locais badalados, cenográficos, mas que não conversam

com nosso paladar e estômago.

 

E onde o Brasil mostra maior potencial de evolução?

GP: Primeiro de tudo: o cenário gastronômico brasileiro está flo-

rescendo. Há qualidade, diversidade e clientes conscientes. Para

ser objetivo na pergunta, há muito potencial para expandir no

contexto da sustentabilidade no Brasil. Os chefs estão realmente

engajados nesta causa e a entrega das estrelas verde é um reco-

nhecimento da nossa parte para este esforço. Notamos que é uma

fortaleza daqui e com potencial de crescer. Agora, no âmbito geral,

há um alinhamento do Brasil com o mundo, que é ver os chefs e

restaurantes expressarem suas personalidades, suas influências e

história pessoal. Isto nos trará sabores distintos e únicos. Nada

mais entediante que você viajar pelo mundo e comprar as mesmas

roupas, encontrar as mesmas marcas e comer os mesmos pratos

com os mesmos sabores. Felizmente estamos nos afastando dos

pratos globais, de sabores pasteurizados e padronizados. Para os

amantes da gastronomia, é um período muito interessante na his-

tória, as pessoas estão dispostas a provar novos sabores, se aventu-

rar um pouco mais, especialmente após a pandemia.