Gostoso e Imoral

Fotografia: Luiz Henrique Mendes
J.A. Dias Lopes

J.A. Dias Lopes

Cada vez que afundamos uma colher na tigela de arroz-doce, remexemos no passado. Os livros dizem ser receita surgida há milênios no Médio Oriente, ou melhor, na antiga Pérsia, o atual Irã. Mas há quem atribua a autoria dessa sobremesa cremosa e delicada aos indianos, os primeiros a cultivar o arroz, planta da espécie Oryza sativa. Seu pioneirismo teria ocorrido por voltas do ano 3.000 a.C., nas províncias de Bengala, Assam e Mianmar. Dali o arroz foi para a China, Índia, Egito e, mais tarde, chegou à Europa, África, Américas e Austrália. A China influenciou a Coréia e o Japão a cultivá-lo.

 

Trata-se, portanto, de um dos doces mais antigos do mundo. Os outros são o asure, da Turquia, e o cannolo (singular de cannoli) da Sicilia, no sul da Itália. Há muitas divergências em torno disso, é claro. O asure constitui na prática uma “sopa grossa” à base de grão-de-bico, arroz, figos e damascos secos, zestes de laranja, uvas-passas, mel, avelãs, pistaches, snoobar (também conhecido como pinoli), baunilha e água de rosas. A tradição turca, fiel ao Alcorão ou Corão, o livro sagrado dos muçulmanos, acredita que foi improvisado por Noé e familiares quando deixaram a arca salvadora, no final do Dilúvio Universal. Aproveitaram no asure os suprimentos que restavam.

 

Os que atribuem a invenção do primeiro doce à Sicilia baseiam-se em uma descrição feita no ano 70 c. C. por Marco Túlio Cícero. O grande filósofo, orador, escritor, advogado, questor (magistrado) e político romano saboreou cannoli no sul da península itálica e os descreveu como “tubus farinarius, dulcissimo, edulio ex lacte factus”, ou seja, “deliciosos tubinhos de massa de farinha, muito doces, recheados com leite”. Evidentemente, as três receitas antigas eram adoçadas com mel, pois o mundo ainda não dispunha, pelo menos com fartura, do divino dulçor do açúcar de cana, aliás planta originária da Índia.

 

O mundo atual aprecia o arroz-doce, também chamado no Brasil de arroz de leite ou arroz de função. Seus grãos cozinham em leite ou têm esse ingrediente adicionado depois. Para muitos brasileiros adultos, trata-se de um comfort food – aquele alimento que nos traz reminiscência sentimental e nos recorda de pessoas queridas ou de tempos felizes. Equipara-se em força de valor nostálgico à goiabada com queijo, à paçoca de amendoim, ao bolinho de chuva, ao bolo de fubá e outras maravilhas brasílicas.

 

Os árabes plantaram o arroz e difundiram seu doce na Península Ibérica quando a invadiram em 711. Espanha e Portugal, o principado de Andorra e Gibraltar, território ultramarino do Reino Unido, formam a região. De lá a receita veio para a América, trazida pelos colonizadores europeus. Escritores árabes do passado, nascidos na Península Ibérica, referiram-se ao arroz-doce. O médico Ibn Zuhr ou Avenzoar, natural de Sevilha, que viveu entre 1091 e 1161 e tornou-se um dos mais importantes clínicos e cirurgiões da Idade Média, elogiou sua relevância alimentar no livro “Kitab al-Agdiya” (“Tratado de los Alimentos”, em espanhol).

 

Um manuscrito anônimo da cozinha árabe-hispânica do século XIII divulgou uma receita de arroz-doce que não difere muito da atual. Requeria 250 gramas de arroz, 3 litros de leite, duas colheres de mel, 75 gramas de manteiga derretida, canela para polvilhar e rendia seis porções. O arroz ficava de molho por um dia e uma noite. Depois de escorrido, cozinhava no leite com mel. Na hora de servir é que ia manteiga derretida, colocada em uma cavidade aberta no meio. Finalmente, polvilhavam-no com canela, especiaria originária do Sri Lanka, no sul da Ásia.

 

A culinária libanesa tem uma sobremesa parecida, o riz bi haleeb roz, perfumado com água de rosas ou flor de laranjeira. Já foi elaborada com mel. Hoje, leva açúcar. O mesmo acontece na Síria. O Irã tem uma variação com lascas de nozes, mas curiosamente sem leite, feita só com água. Nos últimos séculos, acrescentaram-lhe chocolate. Na Ásia, a Tailândia prepara um imperdível arroz-doce com leite de coco e manga. Apesar da combinação parecer exótica, os três ingredientes harmonizam-se saborosamente.

 

Em Portugal, os arrozes-doces contemporâneos, por mais que variem, assemelham-se aos encontrados no Magreb, a região de cultura islâmica que abrange o noroeste da África e inclui o Marrocos, a Argélia e a Tunísia. Em Coimbra, no coração do território lusitano, há uma receita apetitosa que incorpora damasco e doce de framboesa. Denota ascendência francesa. Chama-se arroz doce à la Condé. Usa o nome de um general da Guerra dos Trinta Anos: o Príncipe de Condé (1621-1686), para quem trabalhava o famoso cozinheiro e maître d'hôtel François Vatel (1631-1671). A ele se atribui a invenção do creme de chantilly. Vatel passou à história pelas circunstâncias de seu suicídio.

 

Desesperado porque o peixe encomendado não chegava e ameaçava o sucesso de um dos jantares oferecidos a Luís XIV pelo Príncipe de Condé, ele cravou um punhal no coração. Vatel havia sido encarregado de organizar para o rei da França três dias e três noites de festas no Château de Chantilly, propriedade do patrão. Cerca de 3.000 pessoas da nobreza foram convidadas a passar ali um fim de semana de comilança, excessos e caça. Entretanto, muitos historiadores gastronômicos não lhe atribuem a autoria do arroz-doce do Príncipe de Condé, mas a outro cozinheiro, um certo Boucher. Como a receita chegou a Portugal? Impossível saber. Sabe-se que o país sofreu três invasões francesas, em novembro de 1807 (comandada pelo general Junot), março de 1809 (liderada pelo general Soult, e junho de 1810 (sob o comando do marechal Massena).

 

Espanhóis e portugueses fazem o arroz-doce de várias maneiras. São frequentes duas cozeduras, uma na água, outra no leite. Em alguns casos, entra apenas leite. Nas Astúrias, adicionam açúcar queimado em cima. Em certas localidades de Portugal são acrescentadas gemas. Tanto que o escritor gastronômico lusitano Virgílio Nogueiro Gomes, no livro “Doces da Nossa Vida” (Marcador Editor, Queluz de Baixo, Barcarena, Portugal, 2014), divide o arroz-doce em dois grupos: com ovo e sem ovo. De um jeito ou de outro, sempre foi presença obrigatória em festas, romarias e particularmente em comemorações de casamento portuguesas. Em Coimbra, é usado como convite de núpcias. A pessoas distinguidas pelos noivos recebem-no em uma travessa, que devolvem com um presente, muitas vezes dinheiro.

 

No Brasil, servem-no com canela polvilhada. É doce que não falta nas festas juninas. Notabiliza-se  também como mimo de avó, tia velha ou madrinha. Incorpora-se à receita, porém, um produto industrial: o leite condensado, cujo gosto dominante já padronizou uma infinidade de receitas nacionais, sejam bombons ou canjicas, mousses ou pudins, rocamboles ou bolos. É ingrediente de qualidade? Não se discute. É gostoso? Ninguém  diria o contrário. Entretanto, sendo denso, homogêneo, levemente amarelado, cremoso e sedutor de crianças, jovens e adultos, com uma concentração de açúcar tão grande que chega a doer na garganta, o leite condensado estandardiza o sabor.

 

As pessoas até podem achar que comem sobremesas diferentes, mas o sabor é igual em todas que o incorporam. A textura do arroz-doce com leite condensado fica diferente. Muitos até acham bom, outros não. Além disso, converte a preparação em torpedo dietético. Quando vendido em latinhas com 395g, cada uma fornece 1263 calorias. Equivale à ingestão de cerca de oito hambúrgueres de calabresa; ou 9 latas de cerveja de 350 ml; ou 12 coxas de frango assadas com a pele.

 

Há versões lights do arroz-doce. Algumas seguem o espartilho dos veganos. Nesse caso, as receitas substituem o leite de vaca pelo vegetal. Os veganos acreditam que a troca garante uma melhor qualidade de vida e previne uma série de doenças a longo prazo. Preparam o arroz-doce com leite de soja, arroz, amêndoa, aveia, coco ou amendoim. Acontece que o arroz-doce consagrou-se mundialmente à base do leite produzido pelas glândulas mamárias das fêmeas dos mamíferos. Desse modo o conhecemos e adoramos. Nenhuma receita heterodoxa terá a mesma personalidade. Do jeito tradicional é que o arroz-doce tornou-se gostoso e imortal.

 

 

RECEITAS:

ARROZ-DOCE À LA CONDÉ

Rende 4 porções

 

INGREDIENTES

.1,5 ml de leite integral

.2 tiras de casca de limão

.350ml de água

.75g de arroz cru

.100g de açúcar refinado

.1 lata de pêssegos em calda (cortados pela metade)

.40g de açúcar cristal

.2 colheres (sopa) de geleia de framboesa

 

DECORAÇÃO

.Folhas de hortelã

 

PREPARO

1.Ferva o leite integral com as cascas de limão. Desligue o fogo e reserve essa mistura em infusão por, no mínimo, 30 minutos.

2.Enquanto isso, leve a água ao fogo e, assim que ferver, adicione o arroz.

3.Cozinhe por 4 minutos, em fogo brando, e coloque o leite quente (sem as cascas de limão), aos poucos, enquanto cozinha. Não coloque tudo de uma vez.

4.Quando o arroz estiver cozido e macio, misture o açúcar refinado e mantenha em fogo brando, até atingir o ponto desejado.  Deixe esfriar.

5. Enquanto o arroz esfria, polvilhe as metades de pêssegos com o açúcar cristal e queime rapidamente com o maçarico (ou leve os pêssegos ao forno com grill, para ficarem dourados).

6. Sirva o arroz-doce com os pêssegos e a geleia de framboesa. Decore com as folhas de hortelã. 

 

Receita preparada pelo pâtissier Flávio Federico, proprietário da Academia de Confeitaria, de São Paulo, SP.

   

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ARROZ-DOCE THAI

Rende 4 porções

 

INGREDIENTES

.4g de capim-santo ou erva-cidreira (1 talo pequeno)

.300ml de leite integral ou leite vegetal de coco

.100g de arroz cru

.400ml de leite de coco

.100g de açúcar refinado

.1 fava de baunilha raspada ou 1 colher (chá) de essência de baunilha

.Mangas frescas cortadas em pedaços, o quanto baste (acompanhamento)

 

DECORAÇÃO

Folhas de hortelã

 

PREPARO

1.Bata o capim-santo com o leite integral e passe por uma peneira.

2.Em uma panela, coloque os demais ingredientes. Misture e cozinhe em fogo baixo, por 30 minutos, ou até que o arroz fique macio e espesso. Se necessário, acrescente mais leite.

3. Deixe esfriar, sirva com as mangas e decore com as folhas de hortelã

 

Receita preparada pelo pâtissier Flávio Federico, proprietário da Academia de Confeitaria, de São Paulo, SP.