Luiz Horta entrevista Ryoko Sekiguchi

Fotografia: Divulgação
Luiz Horta

Luiz Horta

Ryoko Sekiguchi está em plenitude na França. Seus livros sobre conceitos gastronômicos (prefiro chamá-los assim a “livros de cozinha”, pois são amplamente teóricos, mesmo trazendo receitas) viraram best-sellers, em especial Nagori, que fala da melancolia que precede a mudança das estações, com a alteração do que se come, as frutas e legumes sazonais, algo observado atentamente no Japão.

 

Ryoko é japonesa, mas escreve em francês. É também artista conceitual, poeta, tem diversas obras em parceria com fotógrafos, sobre comer nuvens, ou jantares fantasmas. É escritora no sentido amplo da palavra, sempre algo poeticamente, mesmo que o tema seja duríssimo, como no livro que fez sobre as vítimas do acidente nuclear de Fukushima.

 

Eu a conheci casualmente, no Instagram. Começamos a conversar e descobri que já tinha um livro dela, feito com o famoso crítico François Simon, sobre cozinheiros japoneses que trabalham em Paris, fazendo uma cozinha radicalmente francesa mas com algo nipônico sempre. Há um fascínio mútuo entre as duas culturas, os japoneses influenciaram decisivamente a Nouvelle Cuisine, e a integração do fazer japonês ao francês é fácil e natural (lembro da maravilhosa confeitaria de Sadaharu Aoki, com os doces com matchá e yuzu).

 

Sempre considerei que a arte japonesa (aí incluindo a da gastronomia) procurava a desaparição do autor. Uma arte vertical, que quer fazer cada vez mais perfeito o que quer que seja, o entalhe em madeira de uma flauta, um gesto na caligrafia, ou o corte impecável do sashimi. Na pequena entrevista que fiz com Ryoko ela me diz que isso já mudou. Hoje a arte está mais horizontal, ou seja, que há ênfase na criatividade, portanto, na autoria, e a figura do chef ocidental apareceu também no panorama japonês. Gostava da ideia da busca da perfeição no anonimato. Era uma coisa bonita na minha maneira de valorizar as coisas. Quem fez? Não importa, desde que tenha feito o melhor que conseguiu (as catedrais góticas são bem assim, se estou sendo compreendido, esforço coletivo de milhares de mãos em centenas de anos, sem que haja o artista-estrela que assina tudo).

 

Ryoko é difícil de apreender num perfil. Enquanto falo de quatro de seus livros, ela acaba de publicar mais um sobre a cozinha libanesa, um retrato de Beirute feito através das 961 horas que ela passou na cidade, entre abril e maio de 2018.

 

Venho tentando traduzir Nagori e quero traduzir o ‘‘Adstringente” e “Fade”, a trilogia que me parece mais significativa para a comida, e os livros que me capturaram para esta plural escritora.

 

Projeto que parecia bem fácil, preso em casa, com disciplina, em um mês terminaria de fazê-lo, ter “Nagori” em português. Qual! Avanço com a lentidão que a densidade do texto me contrapõe. Ryoko Sekiguichi é tradutora, fez uma nova versão para francês do clássico Elogio da Sombra de Junichiro Tanizaki. Ela me tem dado o prazer da dificuldade de traduzi-la, verdadeiro desafio intelectual.

 

Sou fascinado pelo trabalho do chef Olivier Roellinger na sua Cancale, na Bretanha, foi uma das melhores e mais bonitas viagens que já fiz. E ele, com Mathilde, sua mulher, produzem aquela vasta coleção de especiarias, as Épices Roellinger. Pois, amigos que são, o casal Roellinger e Ryoko Sekiguchi produziram um pequeno livro chamado Le Curry Japonais (fiquei sabendo, por exemplo, que os japoneses consomem curry mais de 60 vezes por ano) que vem com um vidro precioso de um curry assinado pelo trio, depois de inúmeras provas, de diversos curries vindos do Japão, chegaram a um curry nipo-bretão, em que entrou uma alga da região e se procurou mais umami.

 

ENTREVISTA

Gula: Há quanto tempo você mora em Paris e escreve em francês?

Ryoko Sekiguchi: Fiz minha primeira viagem à França quando eu tinha 19 anos. Em seguida, passei a ir e vir e finalmente, em 1997, instalei-me definitivamente em Paris.

 

Gula: Por que decidiu a escrever em francês e depois traduzir a si mesma?

RS: Por ser a língua estrangeira que melhor domino. Mas, além disso, acho que tenho a permanente necessidade de ter dois idiomas para escrever. Se eu soubesse turco, estaria escrevendo também em turco.

 

Gula: A sutileza (e complexidade) dos conceitos da cozinha japonesa (parte de sua obra como o de Nagori, o de adstringência e o insípido) é bastante difícil de aplicar e entender em outras cozinhas. Eu admiro a clareza dos seus livros na explicação destes elementos teóricos. Qual será o próximo conceito?

RS: Ah, os próximos livros não serão de cozinha (pelo menos eu creio que não, pois um assunto sempre pode aparecer...). Planejo escrever sobre o corpo feminino. A sutileza de que você fala não é exclusiva da cozinha japonesa, acho que todas as cozinhas têm sua parte de sutileza e de complexidade, apenas me interessei por estes aspectos. Acho que consegui algo semelhante com a cozinha libanesa no meu novo livro.

 

Gula: A arte japonesa, incluindo a gastronômica, trabalha com um sistema completamente distinto ao ocidental. Não a busca da expressão do ego do artista, mas a procura do aperfeiçoamento de modelos e fórmulas. Você concorda que a figura do “chef” é muito menos importante no Japão do que na França?

RS: Não é mais assim, eu penso. Hoje, os chefs são muito importantes também no Japão. E na França, durante muito tempo, o ofício de cozinheiro não tinha nada de nobre, nem era considerado assim. Até mais, em alguns aspectos da cozinha japonesa, o labor “artesão” do cozinheiro chega a ser mais importante no Japão (no sushi, no kaiseki...) e os chefs afamados são tão estimados quanto na França.

 

Gula: Você acaba de publicar com o casal Roellinger um livro sobre diferentes maneiras de preparar o curry à japonesa, que vem com algo inédito, um vidro de curry criado por vocês juntos. Poderia contar algo desta criação?

RS: A família Roellinger viaja regularmente ao Japão e conhece muito bem o país. Um dia, Olivier me perguntou: ‘porque os japoneses comem curry?’. Eu expliquei a relação do Japão com o curry, a chegada do curry no século 19 vindo de Inglaterra e Índia...Depois desta conversa, Mathilde, responsável pelas especiarias [a ampla produção de temperos autorais e a coleção fantástica de diferentes pimentas, baunilhas, temperos do mundo todo, nas lojas Épices Roellinger] começamos a inventar um curry que exprimisse nossos gostos, com inúmeras tentativas e provas. Decidimos harmonizar o curry com umami e para isso misturamos hatcho miso (o tipo de miso fermentado durante um período bastante longo) e uma alga da Bretanha.

 

Gula: Acredita que a cozinha japonesa ainda é uma influência tão forte na francesa como foi na época da Nouvelle Cuisine? E os chefs franceses influenciam muito os japoneses?

RS: Penso que a cozinha japonesa terá sempre uma influência sobre a francesa. Mas, no presente, o interesse francês se ampliou para a street food japonesa e cada vez se come mais pratos deste estilo de comida de rua e também do que se come nas casas japonesas. Os franceses ampliaram o conceito de cozinha japonesa, incluindo pratos caseiros, como o kara’age, tonkatsu, o próprio curry japonês...

 

Gula: Para terminar, você vê a possibilidade de ler as cozinhas ocidentais utilizando os instrumentos de pensamento com os que trabalha? Quer dizer, encontrar um conceito como nagori na sua forma ocidental?

RS: Tenho certeza de que há palavras esquecidas que nos ensinam muitas coisas, um dos meus livros recentes, “Fade” é sobre uma palavra francesa e não japonesa, por exemplo. Basta que se observe um pouco, que se preste atenção a uma palavra, e ela começa a te contar histórias...

 

fotos: Divulgação/Felipe Ribon