Luiz Horta: O Uruguai existe

Sigo uma conta no Instagram com este nome divertido: Uruguay existe. Sempre me soou engraçado que um país real, nosso vizinho, tão bonito e agradável, precise afirmar a própria existência

Fotografia: Divulgação
Luiz Horta

Luiz Horta

Conheci Daniel Pisano, um dos mais ativos membros da família de vinhateiros uruguaios, no primeiro encontro da importadora Mistral. Fiquei encantado pelos vinhos, tão despudoradamente autênticos, tão expressivos e sem disfarces.

Nunca tinha tomado um vinho uruguaio. Realmente, até aquele momento, para mim, o Uruguai não existia. Daniel, cuja família completa este ano um centenário na atividade dos vinhos, representa exatamente o que o pequeno país é: terceira geração de imigrantes italianos e bascos. Eu ia passando direto pelo stand dele quando fui chamado por aquela figura única, o extrovertido e bigodudo cavalheiro:

— Quer provar algo diferente?

Foi assim que fez o então príncipe Charles provar seu Tannat (e comprar depois caixas do importador britânico para o palácio).

Seu entusiasmo foi tanto por eu ter parado para provar seus rótulos — pois a feira era grande e tinha muita gente graúda da França, Itália e outras potências vinícolas — que ele pediu:

— Você gostou do que fazemos, precisamos que nos ajude a falar sobre o nosso produto.

Recebi essa frase como uma missão.

Passados uns meses, comprei um pacote turístico. Não foi viagem de imprensa nem convite; foi uma quase obrigação que me impus. O pacote incluía passagem pela linha aérea nacional, a Pluna (que, ao contrário do Uruguai, já não existe), quatro noites de hotel, transfer e city tour (que não fiz, para grande decepção do motorista, que queria me mostrar Montevidéu e quase chorou no hotel por eu não poder fazer o passeio). Paguei tudo em prestações.

No dia da chegada, Daniel me buscou cedo no hotel. Era inverno, e o Rio da Prata cobria a cidade com uma neblina que a tornava mais antiga, melancólica e bonita. Nas cidades que me fascinam, chove ou há neblina; é preciso algo de escuro, triste e de “tango” nelas para que sejam capazes de alegria.

Fomos a um vinhedo, o primeiro que visitei na vida, e que, nas quase três décadas seguintes, se tornaria algo corriqueiro para mim. Pisano me mostrou também o Estádio Centenário, o Congresso, a casa do presidente — onde uma simples viatura de polícia com dois guardas sonolentos fazia a segurança — e almoçamos no Café Brasileiro, onde Mario Benedetti, grande escritor da banda oriental, costumava escrever.

Depois, naquele país que ainda era só de produtores familiares, fui entregue a outro anfitrião, Carlos Pizzorno, com quem aprendi a arrolhar espumantes sentado num banquinho e pressionando um pedal. Carlos me levou aos Marichal, onde almocei no calor agradável da cozinha, com a família reunida e o fogo da lareira aquecendo o ambiente. A conversa era sobre a vida, não sobre solo argilo-cálcario ou calicatas.

E assim segui: o grande Reynaldo De Lucca, considerado um excêntrico, mas na verdade um gênio; Juanicó, onde abriram safras muito antigas de seus vinhos tão especiais… Sempre uma família me apresentando a outra, sem monopolizar a visita, e com uma imensa gratidão por alguém se deslocar até lá para visitá-los.

Tive o encantador ritual (que depois repeti em diversas viagens ao local) de um assado com os irmãos Pisano: Gustavo, Eduardo e Daniel. Gabriel, filho de Eduardo, que viria a ser o motor de Viña Progreso, era um adolescente que ajudava a podar e conduzir videiras naquele momento.

Voltei tão encantado que acabei colaborando para o World Atlas of Wine, de Jancis Robinson, na parte sobre o Uruguai — algo que me honrou. Quem pega a edição em que apareço nos agradecimentos por “Uruguay” estranha eu estar ali.

Agora, o Uruguai já existe. Há muita novidade: bodegas grandes, interesse em seu terroir. Mas o que mais me alegra é ver que aquelas famílias originais geraram novos entusiastas. Agostina e Stefano De Lucca estão fazendo deliciosos vinhos frescos, um Tannat de maceração carbônica para beber gelado. Gabriel Pisano trabalha com variedades inesperadas, como Sangiovese, e métodos de vinificação diferentes: barrica aberta, pet-nats, o famoso Licor de Tannat que criou para a Pisano. Francisco Carrau e sua filha fazem um laranja de Trebbiano e Petit Manseng, e assim por diante. O Uruguai cada vez existe mais.

 

“No cabe duda. Esta es mi casa/ aquí sucedo, aquí/ me engaño inmensamente./ Esta es mi casa detenida en el tiempo”, escreveu Mario Benedetti.

 

Gostei tanto de lá que disse: “Vou morar aqui, esta é minha casa”. Um dia irei. Montevidéu é como estar em 1950, só que hoje — se me faço entender.