Me engana que eu gosto

Fotografia: reprodução da internet
Alexandre Lalas

Alexandre Lalas

Uma garrafa suspeita, de um suposto Romanée Conti de 1924, que fazia parte de um lote que ia a leilão em Hong Kong nesta quinta-feira, causou um verdadeiro bafafá no mundo dos colecionadores em todos os cantos do mundo.

 

Em um universo ainda traumatizado com as falcatruas de Rudy Kurniawan, ainda preso, e a cumprir uma sentença de 10 anos por falsificação, a Acker Merrall & Condit, a casa de leilões que originalmente oferecia esse vinho para venda, conseguiu apanhar de todos os lados ao oferecer por um lance mínimo de US$ 20 mil (R$ 100 mil) a tal garrafa de Romanée Conti 1924. O que causou estranheza em colecionadores foi o vidro da garrafa, bem diferente do estilo usado pela DRC na década de 1920, além do “rótulo”, que não passava de uma tira de fita adesiva com "Romanée Conti 1924" escrito à mão.

(na foto, a garrafa 1924 que estava no lote. Abaixo, uma garrafa DRC legítima de 1923)

A grita foi tanta que a AM&C retirou o vinho do lote, especialmente após Don Cornwell, um advogado californiano conhecido por ser o terror dos falsificadores de vinho, avisar a empresa dos riscos que corria ao manter a garrafa para venda. Mesmo assim, todo o lote que vinha de uma coleção particular acabou sob suspeita.

 

Cornwell chegou a paralisar um leilão de DRC em Genebra, Suíça, em 2016 após colocar em suspeição um lote de vinhos da Domaine da safra 1978.

 

“É difícil não ter um senso de déjà vu”, escreveu o colecionador W. Blake Gray, no site da Wine Searcher ontem. Ele compara a maneira que a AM&C descreve a fonte do lote suspeito com a forma que fazia com os vinhos da coleção de Kurniawan em um catálogo de leilão de 2005.

 

Compare as duas descrições:

 

"Não há muito o que se dizer sobre essa coleção, exceto pelo fato de ser uma das maiores dos Estados Unidos. Anos foram gastos adquirindo cuidadosamente o melhor dos melhores, e provavelmente não há um único grande vinho do século XX que este colecionador não tenha tido em várias ocasiões. Este é um colecionador que realmente inspeciona seu vinho. Já vimos muitos colecionadores de vinhos antigos e raros que nem sequer olham para as garrafas que adquiriram, mesmo que sejam vinhos que merecem uma inspeção cuidadosa ", disse a empresa de leilões a respeito da coleção de Kurniawan. Na época, a AM&C não mencionou o nome da fonte. Kurniawan tinha então apenas 28 anos.

 

A coleção que despertou desconfiança nesta semana foi assim descrita pela AM&C: “"Temos o prazer de receber este colecionador estabelecido que sempre teve um gosto pelo melhor, seja ele arte, vinho, relógios ... ou mais vinhos! Ele sempre compra das coleções mais importantes em leilão, aquelas em que considera a procedência de primeira qualidade, como transcritas lindamente por esses cinquenta lotes de Bordeaux e Borgonha de primeira linha”, também sem identificar quem é o dono da coleção.

 

Blake Gray entrou em contato com a AM&C para questionar o fato. Recebeu um e-mail como resposta, não se furtando a publicá-lo: “"O lote 710 em nosso próximo leilão de junho em Hong Kong foi adquirido por nosso expedidor em um leilão da Zachys em setembro de 2012. Conforme observado em nosso catálogo de leilões, continuamos entendendo que essa garrafa era da adega de Aziz Khan, um colecionador extremamente proeminente e bem conhecido. Além disso, continua sendo nosso entendimento que essa garrafa havia sido importada para os Estados Unidos há muitos anos pela Collectors 'Cellar - uma empresa de propriedade de Bipin Desai, uma figura lendária no mundo do vinho e uma pessoa de credibilidade impecável. Não obstante a proveniência da garrafa, determinamos que o curso de ação mais prudente e apropriado nessas circunstâncias era retirar o lote 710 da venda e foi o que fizemos”. O email foi assinado por John Kapon, presidente da AM&C.

 

“Embora Kapon tenha dado o nome de dois colecionadores conhecidos, continua a não revelar o nome da fonte, o expedidor que efetivamente entregou a garrafa suspeita para o leilão”, argumenta Blake Gray.

 

O fato é que muitas vezes os compradores estão menos interessados no que está dentro da garrafa e sim no status que adquirem ao exibir determinados rótulos raros. E este fato abre uma avenida pavimentada para falsificadores habilidosos, como Kurniawan, cuja história rendeu um delicioso documentário chamado Sour Grapes, disponível no Netflix.