A natureza em liberdade

Viñedo Silvestre, no Chile, tem 60 anos de idade, dos quais 40 deixados livres


Nestes tempos trágicos que atravessamos, alguns momentos de alívio, até de alegria, foram testemunhar a natureza reocupar rapidamente seus espaços: os turvos e esverdeados canais de Veneza, subitamente livres de poluição, mostraram águas-vivas nadando, peixes, lembrando que aquela cidade surreal (que completou em abril 1600 anos de idade!) é um enclave sobre o mar.

Vimos também uma família de patos selvagens cruzando sem pressa os normalmente lotados por carros, bulevares parisienses. E corças, javalis, veados ousaram sair de seus esconderijos e entrar nas cidades pela Europa afora. A lista é grande, foram puro encantamento, lembrando que a natureza é dura de destruir. Lembrei de uma frase do escritor francês Bruno Le Maire: “Nossos novos deuses são climáticos. Eles sentem prazer em triturar nossa tola pretensão de dominar a natureza”.

Quem não deixou um jardim abandonado por um mês de férias e na volta não reencontrou um denso matagal? Vou chegar nos vinhos, peço paciência, mas quero contar um caso acontecido comigo.

Eu morava numa casa de fundos, no bairro paulistano do Pacaembu, duas quadras de distância do estádio de futebol e cercado por avenidas e prédios altos, centro bem urbano da cidade. Um dia, depois de um verão especialmente chuvoso, começou a chover dentro do meu escritório, que ficava no segundo andar. A investigação das causas mostrou que uma já grande pitangueira, cuja semente deve ter sido excrementada por algum pássaro, tinha nascido entre laje e telhado, empurrando e deslocando todas as telhas do lugar. Uma beleza de fenômeno, de vida. Tive que me mudar, mesmo assim era bonito o espetáculo de uma casa com uma árvore no teto.

Além de vinhos eu gosto e consumo muito chá, recentemente comprei um chá verde de Registro. Este município do interior paulista foi outrora polo importante de plantação de chás pelos imigrantes japoneses. Está retomando este lugar rapidamente, venho provando chás cada dia melhores vindos de lá.

O que entra aqui na coluna é o chá verde do Sítio Yamamaru. A família plantou o chazal em 1953, mas por razões diversas, abandonou a atividade nos anos 1990. Em 2017, os herdeiros da propriedade, Míriam e seu irmão Kazutoshi Yamamaru resolveram recuperar a produção. Quando voltaram ao sítio, encontraram uma densa floresta, em que as árvores de chá chegavam a alcançar dez metros de altura. Pacientemente respeitaram este desejo das plantas e passaram à produção agroflorestal, sem uso de químicos.

E aqui chegamos aos vinhos, a primeira vez que vi um vinhedo “selvagem”, foi numa longa viagem à Argentina, de Salta à Patagônia (para esta mesma revista GULA, em 2004!). Estive em Rio Negro, província patagônica, em que Piero Incisa della Rochetta encontrou, comprou e passou a explorar com grande respeito, um vinhedo de cerca de 80 anos (naquele momento) de Pinot Noir.

As videiras tinham virado tufos, mas abandonados continuaram a viver e frutificar, como ditava sua vida silvestre, dali saíram Barda e Chacra seus vinhos hoje são premiadíssimos e até raros, listados entre os melhores Pinot Noirs do continente.

De lá para cá as vinhas velhas, os vinhedos encontrados como se tivessem nascido sozinhos, se tornaram mais comuns. Mesmo assim, ainda há surpresas.

Minha epifania com o tema foi o chileno Villalobos, que é o auge deste “descontrole” natural: ver fotos da colheita de sua Carignan é espantoso. O Viñedo Silvestre, na região chilena do Vale de Colchagua, tem 60 anos de idade, 40 dos quais deixados assim, livres. São necessárias escadas, ou pessoas se equilibrando nos ombros de outras para conseguir colher as uvas. 

Nunca tinha visto nada semelhante, é floresta fechada e quase impenetrável de Carignan, nascida desenfreadamente, sem qualquer tipo de controle ou intervenção, sem poda, sem irrigação, sem nada, misturada com a vegetação nativa. O vinhedo é o retrato da pura vontade da videira, sem princípio nem fim, um emaranhado de folhas e galhos e uvas. E o vinho é delicioso, como se bebêssemos a verdade líquida da uva fermentada. Um encantamento e um milagre.

(Os vinhos Villalobos são importados no Brasil pela Portus Cale)

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