Chá com vinho – e dá certo

Estava em Paris (melhor maneira de começar um texto) quando recebi uma mensagem de François Simon: “Quer jantar esta semana no Yam’Tcha?” Imediatamente aceitei


Estava em Paris (melhor maneira de começar um texto) quando recebi uma mensagem de François Simon: “Quer jantar esta semana no Yam’Tcha?” Imediatamente aceitei. Farei um intervalo para explicar quem é François Simon e por que não se pode dizer não a ele. Um dos críticos de restaurantes mais famosos da França, primeiro no Le Figaro e depois no Le Monde, agora mais desligado de jornais, escreve em diferentes lugares. E viaja sempre ao Japão, sua grande paixão. Quando exercia a crítica semanal (sua coluna se chamava Haché Menu, algo como “cardápio picadinho ou moído”, o que dá o tom de sua crítica corrosiva), sua opinião podia fechar um estabelecimento. Segundo se diz, foi a inspiração para o personagem Anton Ego, da animação Ratatouille. E nunca se viu seu rosto, pode revirar o Google Images, ele conseguiu, por décadas, permanecer anônimo.

Claro, há pistas. Não é sempre que um cliente chega para jantar usando um terno bem dândi, de veludo lilás, por exemplo, ou pedalando uma bicicleta prateada e com um chapéu verde-duende. Sempre há uma suspeita: “será que é o Simon?”. Mas, exceto para quem tem o prazer de conhecê-lo, ele permanece misterioso e sem rosto.

Estive com ele algumas vezes: duas aqui em São Paulo, onde fomos comer na Liberdade, e algumas em Paris. Tenho todos os seus livros, pois é um grande escritor, sempre com ironia, estilo e talento. É a melhor companhia de mesa possível: bacharel em literatura, interessado em toda forma de arte, não só a gastronomia, tem ótimo papo e, nos endereços paulistanos, sem o risco de ser desmascarado, estava completamente relaxado e bem-humorado.

Explicado, então, por que aceitei na hora ir jantar no Yam’Tcha. Era um jantar pago, bem caro, organizado por ele para ajudar o casal dono do restaurante.

O Yam’Tcha

Agora, a parte dois da coluna: o Yam’Tcha. O casal Adeline Grattard e Chi Wah Chan é conhecido por quem assistiu a Chef’s Table, na Netflix: um episódio foi a respeito deles. Ela é da Borgonha, foi morar e trabalhar na China, em Hong Kong, cidade do marido, e se tornou uma chef com forte influência da rica culinária chinesa, somada à sua formação bem clássica francesa (trabalhou alguns anos com o triestrelado Pascal Barbot). Em 2009, abriram um restaurante minúsculo em Paris e, em 2010, veio a estrela Michelin. Era uma portinha que acomodava apenas umas vinte pessoas, na região dos Halles. Ela cozinhava, ele combinava os pratos com chás.

Aquele microespaço não dava conta da demanda. Na volta da esquina, eles se atreveram a alugar e reformar um espaço maior, e o jantar de Simon foi organizado para ajudá-los a terminar esse empreendimento. O crítico também tem amigos e procura ajudá-los como pode, sem comprometer sua independência.

No novo espaço, passaram a oferecer três tipos de harmonizações: com chás, com vinhos e com chás e vinhos. Optei pela última para ver como Monsieur combinava seus sublimes chás (ele importa os diferentes tipos com escolha criteriosa) com vinhos, como se comparavam e qual era seu pensamento em relação aos vinhos franceses por meio dos chás. Eram chás, sublinho, nem infusões, nem tisanas, nem rooibos: Camellia sinensis. A casa tem uma excelente sommelière, Marine Delaporte, e foi lindo ver como, em harmonia, os dois trabalhavam juntos, chás e vinhos perfeitamente integrados na combinação com a comida.

Como sou desorganizado, não tenho mais o menu, mas lembro de memória cada bebida proposta. Foi uma pequena festa. Todos conheciam François Simon, e ele pôde circular livremente entre as mesas, parando para trocar algumas palavras com cada um. Sem querer me gabar, ganhei o livro sobre a Rue Paul Bert que ele acabara de publicar. Tem noites em que as coisas são especiais.

Foi também um prenúncio do que hoje não é tão exótico: há muitos restaurantes propondo harmonizações que vão além do vinho. O que é ótimo! Isso amplia nosso paladar, nosso prazer e inclui no cardápio bebidas inesperadas, como single malts, águas e, claro, os mais variados chás. Uma vez, com Benny Novak, do Ici Bistrot, fizemos um jantar todo harmonizado com single malts e foi muito bom. Quem pensa que chá é aquele saquinho de sabor horrível, com folhas velhas e passadas — algo que se bebe quando se está acamado por uma gripe forte — nem imagina a riqueza de aromas e sabores que está perdendo.

Antes que acabe o espaço, lembro rapidamente alguns chás e seus porquês naquela refeição: Champagne e um oolong tão cítrico que parecia efervescente; um Borgonha branco e outro oolong, mas com leve secagem sob fumaça de cipreste; um Bordeaux evoluído e um dos meus chás favoritos, um pu-erh (chá que tem imensa complexidade, é vendido safrado, e dura e evolui com o tempo) e um Sauternes e um Jin Xuan, um “milky oolong”, uma preciosidade para o paladar, um chá com traços lácteos e cremosos, característicos do terroir e não de sabores agregados. Chá é paralelo às uvas: reflete o solo, o clima, o modo de colheita e de secagem. Não estou me referindo a produtos artificialmente aromatizados.

Meu livro predileto de Simon estava comigo, e ele autografou com sua bela caligrafia. Era um livro sobre viagens chamado Pars! Voyager est un sentiment. Depois, ele me contou que era também seu livro favorito, pois, grande viajante que é, foi o que mais prazer teve em escrever. Tem, inclusive, um capítulo sobre São Paulo…

Editoras, traduzam François Simon! Só há (que eu saiba) um título publicado no Brasil, pela editora SENAC, chamado Comer é um Sentimento, ainda encontrado em algumas livrarias de usados.

O Yam’Tcha fica no 121, rue Saint-Honoré e merece estar na sua lista, caso viaje a Paris. O endereço original virou loja de baos (os bolinhos chineses cozidos no vapor, com recheios que Adeline Grattard cria, deliciosos) e onde se pode também comprar os chás a granel ou um chá pronto, para viagem. No inverno, é uma delícia sair com uma caixa de baos quentinhos e um copo de chá e ir comer logo ali ao lado, olhando a bela arquitetura de Saint-Eustache.

Esta coluna é um convite: experimentem chás com comida. A surpresa do que é o seu universo é imensa. Sou grande consumidor de chás, de café, de mate. É tão difícil se limitar a uma coisa só…

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