Líquidos de pedras infinitas

Conheça o Fósil: o vinho branco da Zuccardi que inspirou nosso colunista


O título desta coluna se inspirou no nome lindo e poético de uma Finca da família Zuccardi, no Valle de Uco, em Mendoza, Argentina. De lá saem vinhos fascinantes, vou falar de um deles. Mas, antes de chegar nele, voltarei duas décadas no túnel do tempo.

 

Em dezembro de 2004, a trabalho por esta mesma revista Gula, conheci a Argentina. Curiosamente, tendo morado em Buenos Aires de 1998 a 2000, nunca saí da capital, bebia vinhos da prateleira do supermercado, sem prestar muita atenção, escrevia sobre artes plásticas naquele período e vinho era só uma bebida. E a impressionante reviravolta que a produção rioplatense passaria nestes anos, nem era sonhada.

 

A “road-trip” que virou encarte da revista foi de Salta à Patagônia, quase toda por terra. Hoje, minha ossatura de idoso não daria conta do roteiro. Não vou contar a viagem, apenas dizer que foi oportunidade pedagógica extrema, Salta é um mundo fora do planeta, mais parecida com a paisagem lunar, se houvesse cactos na Lua. Estive no vinhedo mais alto do mundo, 3 mil metros de altura, não sei se continua sendo, mas na época ostentava esse “título”. 

 

Acompanhado por Ken Tanaka, que fez as fotos, atravessamos Catamarca até  a minúscula Anillaco, na La Rioja argentina, onde fica a bodega San Huberto, do ex-presidente Menem, centenas de quilômetros em estradas sem movimento algum. Uma tempestade que só conhecia em programas sobre catástrofes naturais nos acompanhou na rota interminável, caiam raios grossos, como em filme B de Bela Lugosi. Mas chegamos, Eles tinham um bom Petit Verdot e um jantar esperando e o drama passou. Depois seguimos até San Juan e, finalmente: Mendoza.

 

Em Mendoza meu anfitrião foi José Alberto “Pepe” Zuccardi, que já era inquieto e tinha sido pioneiro no plantio de dezenas de castas, produzindo um vinho que ainda fazem e com muita qualidade, o Q Tempranillo. Zuccardi foi o primeiro produtor cujo perfil escrevi, também aqui na Gula, um homem que admiro, cavalheiro, sósia de Victorio Gassmann. E conheci Sebastián, um de seus filhos, que continua o caminho de explorações da vinícola. Escrevendo esta coluna mostrei a Seba, como é mais conhecido, sua foto daquela visita, “jovencissimo” comentou, mas nem mudou tanto assim. Já naquela época Seba Zuccardi estava falando em aspectos geológicos e sua influência nos vinhos. Havia uma semente de Pedra Infinita naquele 2004.

 

Gosto de repetir que o Mendoza cresceu para os lados (antes vinhedos e bodegas estavam todas no entorno da cidade, agora ir ao Valle de Uco exige uma pequena viagem) e cresceu na horizontal, com profunda investigação dos solos e para cima, subindo algumas centenas de metros nos contrafortes dos Andes.

 

Sebastián Zuccardi é como o pai, elétrico e incansável. Vi num stories dele um vinho que não conhecia, chamado “Fósil”, comentei: “não conheço este...”. Em 3 dias recebi uma garrafa e Seba Zuccardi já me dava uma aula sobre o fabuloso branco, via WhatsApp. Lembro que nestes anos todos, o que eu precisava de informação sobre vinhos argentinos, escrevia para Pepe e em horas tinha o que pedira, de volume de produção a qualidade das safras, qualquer assunto da região. Lembro de termos conseguido dele a receita da famosa e  justamente louvada empanada de cebola e queijo, publicamos aqui na revista. Continuam as melhores. 

 

Só para não ficar faltando um pedaço da viagem, conto que terminamos na Patagônia, grande chance que me deu uma amizade que continua até hoje. Antes de irmos, Paz Levinson, que começava a despontar como a grande sommelière argentina, fez uma explicação em Buenos Aires, sobre a Patagônia e seus vinhos, sendo ela também patagônica. 

 

Neuquén é uma terra de fronteira, esperava que passasse um tumbleweed a cada ventania, e como ventava! Os olhos sempre cheios de pó. Em contrapartida, Rio Negro é uma espécie de jardim inglês assinado pela famosa Getrude Jekyll, mas com a adição de cardos da minha altura. Chacra é um pequeno paraíso de bons vinhos numa paisagem fascinante: riacho de águas translúcidas, salgueiros e patos negros de bicos amarelo cádmio. 

 

E o Fósil? O vinho branco de Sebastián Zuccardi que motivou a coluna? É um acontecimento, nasceu com a vocação de grande branco argentino, embora tenha o selo de Sebastián, que usa mais concreto que carvalho. A 1400 metros de altitude e apenas 300 metros de distância da Cordilheira, na parte mais fria do Valle do Uco, a Chardonnay é fermentada em ovos de concreto e depois estagia sobre as borras em concreto, para terminar em passagem por barricas de 500 litros de carvalho francês. Não faz malolática e guarda toda a vivaz acidez do líquido original, com uma untuosidade contrária aos Chardonnays amanteigados e amadeirados que mascaram a beleza da fruta original. 

 

Eu me impressionei, anos atrás, jantando com Seba aqui em SP pelo “Concreto”, vinho que tinha textura, era quase possível segurá-lo na palma da mão sentindo sua densidade. O “Fósil’ repete a experiência. 

Tenho uma alegria que se mistura com emoção por ter visto esta família crescer, com vinhos dignos de serem nomeados “A Nova Argentina”.

 

Fósil 2018, importado pela Grand Cru

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