A segunda pergunta que mais me fazem é: “que vinho combina com tal prato?”. Ou sua variante, por quem vai abrir uma garrafa especial: “o que cozinho para harmonizar?”.
Há diversas regras, geralmente pegando os habituais suspeitos, notórios estragadores de festas: ovos, aspargos, chocolate...eu escutei falar em aspargos a vida toda, muito antes de conhecer um, pois eles são os eternos vilões de livros e cursos de vinhos.
Posso dizer: algumas regras até gostei, mas as melhores combinações vieram por casualidade, por tentativas e experiências. As melhores coisas em beber vinhos são as surpresas. Desde a garrafa da qual não se esperava nada até o nirvana da harmonização, que nada mais é que abrir o que se tem e comer com o que se preparou... e dar certo!
Num método quase budista, através de koans, contarei dois casos do meu passado, para esclarecer aonde quero chegar.
Alguns anos atrás, passei um fim de semana no reino de Monsieur Olivier Roellinger. É um lugar para quem gosta de mar, e detesta calor e praia, meu hotel inesquecível, numa baía de ventos gelados, neblina, na Bretanha. Do outro lado se vê, bem pequenino, o Mont Saint Michel. O programa era estar lá e comer. O jantar todo com as criações de temperos do chef. Um dos pratos era um clássico do seu repertório, um saint pierre com vieiras chamado “Retour des Indes”, que também nomeia o curry pessoal criado por Monsieur. Imaginem um curry delicado de peixe. O que se beberia com ele? Fiquei conhecendo naquela noite o Domaine des Mirroirs, um Jura produzido por um japonês vinicultor: Kenjiro Kagami. Primeira boa surpresa para esta lista.
O café da manhã é servido no quarto. Eu poderia viver ali, passear no jardim de macieiras, visitar a padaria, jantar só pensando que ao acordar teria aquele desjejum peculiar. Além de tudo feito lá, e da melhor manteiga possível, havia uma xícara grande de chocolate quente cremoso para acompanhar uma solitária e pequena...ostra! Duvido que algum manual de harmonizações traga esta: ostra despudoradamente marinha e iodada com chocolate quente. Segunda surpresa.
Naquele tempo se viajava, então saltamos para Paris, para o Le Cinq, restaurante do Hotel Four Seasons George V, onde brilha no salão e no comando da adega, que tem alguns andares para dentro da terra, Monsieur Eric Baumard, de onde ele retira, quase garimpa, garrafas.
Escolhi os pratos e resolvi encarnar o difícil: “não quero nenhum tinto, por favor”. Ele, com seu senso de humor entendeu o jogo, pois o cardápio era da época de caças de pluma e de pelo. Pensei “vamos nos divertir”.
Foram vindo pratos e vinhos, champanhe, um Borgonha branco, um Grüner Veltliner e o que seria a apoteose: um faisão, no ponto exato, ou seja, faisandé (a carne já levemente maturada, para não dizer algo que choque). “É agora”. O assistente serviu um Ganevat, um vin jaune do Jura. Outro Jura! Lá no fundo do salão descobri os olhinhos brilhando de felicidade e o sorrisão de Monsieur Baumard. Eu dissera “não quero tintos”, pois assim foi, um vinho amarelo oxidativo do Jura.
Moral da coluna: tente, experimente e sem medo.
Em tempo: a pergunta que mais me fazem é "que vinho compro para o jantar de hoje?".
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