O desconstrutor da Madeira

Fotografia: Alexandre Lalas
Alexandre Lalas

Alexandre Lalas

Quando entrou para a empresa da família em 1989, Ricardo Diogo Freitas, um dedicado professor de história, não tinha noção do que viria a acontecer. Apenas dois anos depois, a concretização da joint-venture com a família Kinoshita mudou não apenas o futuro da Barbeito. Mudaram também os caminhos e destinos de Ricardo Diogo e, por que não dizer, o do próprio vinho madeira.

 

A Barbeito vivia um momento complicado, em que decisões precisavam ser tomadas. Ricardo preparou as coisas para a parceria com os japoneses, mas não tinha certeza de que continuaria na empresa. Foi aí que entrou em cena Yasuhiro Kinoshita. Foi do japonês o pedido para Ricardo não apenas ficasse na empresa mas que passasse a comandá-la. Começava ali o que se tornaria uma revolução nos vinhos da Madeira.

 

Um dos primeiros atos de Ricardo foi acabar com a produção de vinhos a granel. "Foi fácil tomar esta decisão. Sabíamos que iríamos precisar de alguns anos para recuperar a produção dos vinhos em canteiro. Mas sabíamos que era algo que precisava ser feito. A produção de vinhos a granel sacrificava a empresa e prejudicava a produção de vinhos de melhor qualidade. E essa foi a decisão chave", lembra Ricardo.

Outras decisões e mudanças administrativas foram feitas ao longo dos primeiros anos. Era a chegada da modernização a Barbeito. "Não havia uma grande organização, até porque eles já tinham alguma idade. Então nos primeiros anos mudei algumas práticas que já não faziam sentido. Entre 1989 e 2001 fui aprendendo cada vez mais, experimentando mais. E esse processo correu em paralelo à reconstrução da nossa produção dos vinhos em canteiro", afirma. "Fui mudando progressivamente as coisas, construindo uma equipa mais nova e dinâmica que nos permitiu todos os anos lançarmos coisas novas. Fizemos single casks, os lotes de 20 anos. Estávamos a renascer e a buscar coisas para pequenos nichos. E isso ajudou imenso. Claro que sofri muitas críticas. Mas quem não sofre críticas?", conta Ricardo.

 

Mas não era o suficiente. Cheio de ideias, certezas e convicções, Ricardo tinha fome de mudanças. E sabia que o caminho a ser percorrido não seria livre de percalços. Mas nenhuma revolução se faz sem que paradigmas sejam quebrados. "Pode parecer injusto com minha mãe, ou meu avô, que muitos sacrifícios fizeram para aguentar a empresa. Mas eu não gostava nada dos vinhos que eles faziam. Eram muito doces, carregados na cor. E eu queria vinhos mais puros, com mais acidez, características que julgo essenciais para o vinho madeira", lembra. "Então em 2001, tomei a decisão de não mais adicionar caramelo para transformar a cor. Era uma tradição muito antiga, mas há tradições que a gente pode e deve romper. As cores e aromas passaram a ser outras, os vinhos, mesmo os mais doces, ficaram mais secos e damos mais ênfase à acidez. E o Madeira é muito sobre acidez. Hoje em dia toda gente fala em acidez, mas naquele época nem se falava tanto nisso. Não foi simples", garante Ricardo.

 

Mas a teimosia deu certo e os vinhos foram dando o que falar. "Frequentando feiras e provas, pude notar que com esses vinhos mais secos, com mais acidez, mais elegantes e limpos na cor, ganhamos um público mais jovem. Quando eu comecei a mostrar esses vinhos aquele consumidor mais clássico, mais velho, aquele senhor na faixa dos 60 anos, que estava acostumado ao vinho mais tradicional, eles não gostavam nada daquilo. Eu podia ter desistido ali. Mas percebi que um público mais novo, diferente, ali pelos 30, 40 anos, eles gostavam daquilo. Ganhei um público novo. E percebi também que o vinho ia bem na restauração. Por conta da acidez, de um vinho mais limpo, funcionava bem com comida. E isso foi fundamental para mim. Mercados como Estados Unidos, Japão, Países Nórdicos começaram e pedir o vinho", lembra. 

Desistir não costuma fazer parte do léxico de Ricardo. Há quem diga que trata-se de um cabeça-dura. Mas ele pensa de outro modo. "Às vezes dizem que sou teimoso. Em casa falam isso o tempo todo. Eu não sou teimoso. Sempre ouço tudo o que me dizem. Mas no vinho talvez eu seja um pouquinho. Fui sempre em frente, seguindo minhas ideias, indo pela minha cabeça. Me diziam 'não faças isto, não faças aquilo', mas eu nunca ouvi nada disso, sempre fazia o que julgava certo, fui persistente. Mas era uma teimosia positiva. Tanto que chegamos aqui. E ainda temos espaço, ideias e energia pra fazer mais algumas coisinhas", diverte-se Ricardo.  

 

Hoje os vinhos da Barbeito gozam de enorme prestígio em todo o mundo. E a ascendência da casa coincide com a valorização dos vinhos madeira em todos os mercados. E é impossível dissociar uma coisa da outra. Goste-se ou não do estilo de Ricardo Diogo, o produtor desempenhou um papel crucial neste crescimento recente da região. Tanto que, para muitos, Ricardo chegou mesmo a promover uma revolução nos vinhos da madeira. Hoje é cada vez maior o número de rótulos que primam pela elegância, pela acidez pungente e pela limpeza. Exatamente o ideal de vinhos que Ricardo tinha em mente há 30 anos, quando começou.

 

Mas mesmo assim, apesar de reconhecido em todo o mundo como visionário capaz de modernizar uma região tão cheia de história e glória como a Madeira, Ricardo ainda carece de um reconhecimento maior justamente no quintal de casa. "Hoje em dia cheguei em tantas partes do mundo que até me surpreendo. Eu era um simples professor de história, não entendia nada daquilo. Mas empenhei-me em aprender, em melhorar, nunca tive medo de experimentar, de mostrar, de dar as caras. E até hoje me emociono com o carinho com o qual sou tratado em todas o mundo. Talvez o lugar onde meu trabalho seja menos valorizado seja aqui na Ilha da Madeira. Mesmo em Portugal continental eu vejo um reconhecimento que na minha terra talvez eu não tenha tanto. Mas não me importo. Não faço as coisas em busca de reconhecimento. Quero apenas ter a tranquilidade para continuar a fazer coisas novas, com qualidade, e seguir em frente", desabafa.

 

E seguir em frente, a fazer vinhos notáveis, carregados de alma, emoção e vibração é tudo o que se espera de Ricardo Diogo Freitas. Um ex-professor que virou revolucionário e de tanto gostar do assunto, acabou ele mesmo por fazer história.

 

VINHOS PROVADOS:

Verdelho Reserva Branco 2017

Neste vinho, 9% de sercial do Seixal vem reforçar este verdelho da costa sul. E que ajuda ao vinho este sercial do Seixal entrega! Traz uma tensão a este branco que faz toda a diferença. A curtimenta de 48h por que passa o verdelho, aliado ao estágio de um ano em barricas francesas e húngaras agregam volume e textura. Servem de base. Mas a graça mesmo está na salinidade, nos toques cítricos (especialmente toranja), na frescura e nos nervos que este vinho tem. Já está deliciosamente bom agora. Mas vai ser engraçado acompanhar a evolução deste branco, que tem tudo para reescrever a história dos vinhos tranquilos da Madeira - 92

 

Bastardo Duas Pipas

Sempre há interesse quando podemos recuperar algo que julgávamos perdido. E este é o sentimento primordial a sentir ao encontrarmos um vinho moderno feito com a bastardo, quase extinta da Madeira. Estas vinhas foram plantadas em 2004, por Teófilo Cunha, em São Jorge. A primeira vindima de Ricardo Diogo foi em 2007. E a grande surpresa foi a rápida oxidação da bastardo em canteiro. A partir daí, é tudo tentativa e erro - ou acerto. Este Duas Pipas traz uma pipa de 2010 feito com curtimenta e um 2012, em bica aberta. E resulta em um vinho seco, firme, fresco, tenso, carregado de noz pecã, macio até dizer chega. Ou seja: o resultado é promissor - 88

 

Single Harvest Tinta negra 2008

O grande desafio ao fazer um tinta negra é buscar o equilíbrio. Fazer com que à fruta que facilmente vem, junte-se nervos, tensão. Para buscar esta harmonia, Ricardo apanhou metade das uvas um pouco mais cedo, a fim de garantir uma acidez mais vibrante, e parte mais tarde, mantendo a fruta primária. O resultado é bom. O vinho é macio, fácil, com boa frescura e um conjunto bem amarrado - 86

 

Malvasia Colheita 2005

Este é um vinho que desafia convenções. Em que pese ser um malvasia, e num primeiro ataque a sensação de doçura confirma-se na boca, termina quase seco e com enorme frescura. Entrega diversas sensações, tanto no nariz quanto na boca, como casca de laranja, avelã, marmelo e até notas salinas e especiadas (especialmente noz moscada). E mesmo com toda a concentração do mundo, é fino, equilibrado. Quase delicado. E longo que não acaba mais. Excelente - 95

 

Barbeito Frasqueira Sercial Eugénio Fernandes 1993

A relação de Manuel Eugénio Fernandes e os vinhos Barbeito data de 1946. Relação esta que ultrapassou o fornecimento de uvas para transformar-se em amizade verdadeira e duradoura. Este é o terceiro engarrafamento que homenageia esta relação de confiança e amizade. E que baita homenagem. Não há concessões aqui. É um sercial salgado, cítrico, forte, tenso, elétrico, ácido. E delicioso - 97

 

Barbeito Frasqueira Verdelho Eugénio Fernandes 1995

Quarto engarramento-homenagem à relação das duas famílias (Barbeito e Eugénio Fernandes). Vinho cheio de personalidade, com força, volume, um toque salino e cheio de nuances no nariz (chá preto, fruta seca, cacau). Não vibra e emociona tanto quanto o sercial, mas é um belíssimo vinho - 90

 

Malvasia 50 anos - o japonês

Ricardo Diogo anda a preparar homenagens a personagens que moldaram o caráter e a personalidade dele ao longo dos anos. Aqui, o laureado da vez é Yasuhiro Kinoshita, o homem que decidiu levar a Barbeito ao Japão. E, por outras vias, acabou por mudar a vida de Ricardo. Mais uma vez, a emoção deu voz a um vinho espetacular, superlativo, inesquecível. Como questionar tamanha intensidade e profundidade? No nariz, é um monumento. Notas de frutas secas em conservas se sucedem e confundem com especiarias doces, castanhas assadas. E na boca: bom, é preciso um dicionário para explicar todas as sensações que aqui estão. Resumidamente: uma dimensão quase etérea, combinada com uma vibração contagiante, uma nota picante e um final que não acaba nunca, É como se no mesmo palco estivessem Moody Blues, Ivete Sangalo, Jorge Palma e Pink Floyd. Melhor, impossível - 100