Um Mundo Natural

Fotografia: Divulgação
Alexandre Lalas

Alexandre Lalas

 

Um estudo publicado recentemente pela IWSR, empresa de consultoria no mercado de bebidas, traz uma interessante projeção. A quantidade de vinhos orgânicos e biológicos vendidos anualmente no mundo deve ultrapassar a barreira de 1 bilhão de garrafas já em 2022. O número é quase três vezes maior do que o atingido em 2012, quando 349 milhões de garrafas deste tipo de vinho foram comercializadas. Apenas nos Estados Unidos, o consumo de brancos e tintos orgânicos e biológicos cresceu 14% no último ano. E este número tende a ser ainda maior, já que na conta aparecem apenas os vinhos com certificação. Outro estudo, este publicado em maio pela Wine Intelligence, caminha na mesma direção: o crescimento exponencial deste mercado que um dia foi nicho. Mas que caminha inexoravelmente para se dar as cartas quando o assunto é gosto do consumidor. "Está a crescer em todo lado. É uma multidão jovem, dinâmica e urbana que procura este tipo de vinho. E o reflexo disso é o aumento de importadoras, bares de vinho e feiras especializadas em vinhos biológicos, orgânicos, biodinâmicos, naturais, artesanais", aponta Isabelle Legeron, fundadora da RAW Wine, uma das mais importantes feiras de vinhos deste tipo no mundo.

Distante de números, projeções, tendências e tabelas, no calor escaldante de Ihuanco, no sul do Peru, Pepe Moquillaza, percorre as vinhas assentadas em solo granítico, rico em quartzo, plantadas em pé franco, sem condução, a poucos quilômetros do Oceano Pacífico. Ali ele planta a quebranta, uva local, nativa do Peru, resultado do cruzamento entre duas castas trazidas pelos colonizadores espanhóis: a listán prieto e a negramoll. Utilizada ancestralmente para a produção de pisco, recentemente tem sido redescoberta por produtores de vinho, como Pepe, que as usam para conseguir um tinto de cor clara, acidez vibrante e corpo leve. " Levo muita fé nesta cepa. Fazemos uma vinificação natural, muitas vezes co-fermentando a quebranta com outras uvas usadas normalmente para a produção de pisco, como a albilla e a criolla negra. Quando apanhamos estas uvas mais cedo, temos menos terpenos e uma acidez deliciosa", aposta Pepe Moquillaza, que além deste pequeno projeto em Ihuanco, tem outro, em parceria com o incansável Matías Michelini, (produtor mendocino que depois de revolucionar o estilo do vinho argentino, resolveu romper fronteiras assinando projetos no Chile, no Brasil e no Peru), no clima semi-desértico de Ica, também ao sul do Peru, a 40km do mar. No projeto MIMO, a ideia de Pepe e de Michelini é recuperar castas ancestrais peruanas que desapareceram durante a Guerra do Pacífico, no final do século XIX.

 

Do mesmo lado da Cordilheira dos Andes, só que bem mais ao sul, o canadense Derek Mossman costuma rodar os vales do Maule e Itata, no Chile, a bordo da caminhoneta cor de terra que possui, em busca de vinhas e vinhos de alta qualidade para o projeto que pilota: o Garage Wine Co., em parceria com Pilar Miranda e Alvaro Peña. Em pequenas vendas de estradas perdidas e esburacadas, Derek para a caminhoneta para provar o vinho feito pelo colono local. Se houver potencial, ele engata uma conversa sem fim e convence o produtor a mostrar as vinhas de onde vem a bebida. Derek analisa o solo, a idade das vinhas, a exposição, as variedades existentes, o estado do vinhedo. Se gostar do que vê, propõe parceria na administração da vinha e garante a compra de boa parte das uvas, negócio vantajoso para o produtor local, que ganha muito menos ao vender os vinhos que faz na estrada. Se o negócio anda pra frente, Derek adiciona aquela vinha ao portfólio de pequenas parcelas que administra em ritmo louco e insano e que são a base dos excelentes vinhos, sempre produzidos de forma natural, que o canadense entrega ao mercado. "Em geral gosto das vinhas selvagens, que produzem há tempos com a mínima intervenção do homem. Estas vinhas têm força, alma e vivência e quando são bem tratadas, respondem com um fruto de excelente qualidade. Meu trabalho é encontrar estas vinhas e convencer os seus donos a deixarem as plantas livres de produtos químicos. Aí é só escolher as melhores uvas e não estragar o que a natureza deu", filosofa Derek. Mesmo em vinhas tão diferentes e em locais e condições tão distintas, há um fio condutor nos vinhos da Garage Wine Co.: são firmes, tensos, quase brutos, com uma acidez vigorosa e uma profundidade pungente.

 

Deixas as plantas em paz é o que mais faz o japonês Hirotake Ooka, na Ardèche, no Vale do Rhône, na França. Químico de formação, enólogo por vocação, o produtor deixou o país de origem atrás de um sonho na França: fazer vinho natural. Chegou no apagar das luzes do milênio e foi direto bater na porta de Thierry Allemand, um dos papas do vinho natural. Allemand abriu a porta, mas não havia vaga. Ooka não desanimou. Foi trabalhar com o enólogo Jean-Louis Grippat, cuja vinícola havia acabado de ser adquirida pela Guigal. Mas nos finais de semana, lá ia o japonês trabalhar voluntariamente com Allemand. Assim que abriu uma vaga, o mestre chamou o discípulo, e Hirotake Ooka começou a trabalhar enfim com Thierry Allemand. Logo depois, o japonês comprou uma vinha e uma adega em St. Peray. Nascia ali a Domaine de la Grande Colline. E Hirotake Ooka começou a por em prática tudo em que havia aprendido com o mestre. E talvez a ir mesmo mais além do que Allemand jamais ousara. Ooka não faz nenhum tipo de tratamento nas vinhas. Nem mesmo aqueles autorizados pela agricultura biológica. "Gosto de deixar as vinhas crescerem do jeito delas, sem perturbação", costuma dizer. A primeira vindima foi em 2001. E mal o vinho chegou no mercado, os mais antenados consumidores de vinho natural foram nocauteados com a qualidade e a fineza do que estava ali. Se visitassem a adega escavada na terra, talvez ficassem ainda mais impressionados. A humidade é tanta no lugar que em algumas barricas chegam a nascer cogumelos. Nada que incomode a calma oriental de Hirotake Ooka. Para ele, "tudo faz parte do meio-ambiente próprio que ele dispõe, e que ajudam a tornar os vinhos que faz efetivamente únicos e representantes daquele terroir específico".  O fã-clube que o japonês carrega não é por acaso. Os vinhos da Grande Colline são objeto de culto não pelas esquisitices do produtor, mas pela impressionante qualidade dos vinhos. O Cornas é uma obra-prima de equilíbrio, com uma pureza e intensidade de fruta aliada a uma delicadeza que emociona. Hirotake Ooka é daqueles casos em que o discípulo supera o mestre.

 

Perto dali, em Ventoux, o ex-farmacêutico Philippe Gimel, venceu até a descrença de um banqueiro que se recusava a autorizar um empréstimo com o argumento de que era impossível fazer vinhos na colina de Barroux. Felizmente, Gimel entendia mais de viticultura do que de finanças, e para descrédito do gerente do Crédit Agricole, um ano depois, em 2003, lançava a primeira vindima da Domaine Saint Jean du Barroux. Gimel, que produz vinho de forma natural desde a primeira colheita, crê que o segredo do sucesso está no ecossistema. "Quem vier me visitar, vais ver que muito mais do que um vinhedo, eu tenho um jardim. Há mais de 200 espécies de plantas entre minhas vinhas. Cerca de 10 árvores frutíferas. Há abelhas, joaninhas. Há outros animais também. E mesmo que alguns javalis apareçam e comam algumas das minhas uvas, não há problema. O prejuízo não é nada perto da proteção natural que tudo isso aporta à minha biodiversidade", explica Gimel. E os vinhos que florescem do jardim do produtor são intensos, cheios de fruta e força, mas combinados a uma elegância sutil e uma fineza incomum.

 

A certeza de que a viticultura como monocultura é nefasta e prejudicial ao meio-ambiente é clara para Francesco Paolo Valentini, filho do mítico Edoardo Valentini, fundador da vinícola que leva o sobrenome da família em Abruzzo, na Itália. Precisamente por esta razão, no latifúndio da família a vinha é minoritária. Há olivais, trigo, árvores frutíferas e floresta. Tudo junto e misturado, tratado de forma biológica desde sempre. Por estas e outras que nem Edoardo e nem Francesco gostam de mostrar a adega onde fazem os vinhos, fermentados em cimento, com posterior estágio em tonéis de carvalho esloveno. "Tudo está no campo. É preciso respeitar e entender as plantas", defende Francesco. "Uma vinha na beira da estrada, mesmo que seja tratada da mesma forma, tenha o mesmo solo, a mesma insolação, jamais vai dar vinhos iguais àquelas vinhas cercadas por mata nativa, outras culturas, outras árvores. Tudo se comunica, se funde e se transforma", filosofa. Mistérios a parte, os vinhos da Valentini estão entre os grandes vinhos do mundo, e elevaram a região e especialmente as uvas trebbiano e montepulciano a um patamar que nunca estiveram antes da vinícola.

 

Do outro lado do Equador, no Brasil, mesmo sem tantas certezas nem tradição, e com a ciência de que o caminho é longo, Marina Santos é filha da terra e não foge à luta. Viticultora e vinhateira, a mãe de Leona e Benjamin, começou, junto ao marido Israel, a experimentar fazer vinhos em 2009. A coisa fluiu bem, o resultado era promissor, e em 2014 os vinhos de Marina e Israel começaram a chegar ao mercado. Nascia a Vinha Unna. E como se fala no Brasil, "chegaram, chegando". Nas rodas dos aficionados pelos vinhos naturais, a excitação era evidente com aqueles vinhos limpos, frescos, leves, deliciosos. Vinhos que buscavam uma identidade brasileira e não traziam inspiração nem a concentração chilena ou argentina. Eram vinhos brasileiros como não se ousava fazer. Desde o início, o projeto apostou em agricultura limpa e vinificação natural. Aos poucos, o que já nasceu bom foi ficando melhor. E a consistência fez com que o trabalho ganhasse reconhecimento dentro e fora do país. Mal chega ao mercado, a produção da Vinha Unna desaparece. "Criar algo é realmente fantástico. É poder se expressar, se soltar, se reinventar, experimentar. É libertador. E isso só pode ser feito, quando o vinho expressa tudo isso a partir de um trabalho sério e focado", explica Marina. "Através de pequenas experiências, erros e acertos, o projeto Vinha Unna nos preencheu. Criou corpo, objetivos bem traçados, responsabilidade e compromisso com nosso ecossistema, nossa região, nossos clientes e principalmente com nossos filhos, que precisam do nosso exemplo para ter os mesmos valores no futuro", conclui.

Já na Bordéus dos grandes chateaux, de jantares aristocráticos,  vinhos de sonho que alcançam cifras milionárias, também há espaço para o improvável. Se até alguns anos o ar local era impregnado de veneno, os tempos mudaram e hoje é cada vez mais comum a agricultura biológica na região. O que não é nada comum é uma vinícola de 400 anos que nunca tenha usado um produto químico no solo. Mais incomum ainda é um château bordalês que tenha passado ao largo dos enólogos consultores, das filtrações, das colagens, da adição de leveduras selecionadas, do estágio excessivo em madeira nova, da adição de sulfito nos vinhos... Nada disso faz parte da história do Château Le Puy, propriedade familiar que desde 1610, produz, a leste de Pomerol, um dos melhores vinhos de Bordéus. A vinícola hoje é tocada por Jean-Pierre e Pascal Amoreau, pai e filho, de forma completamente familiar e artesanal. Os vinhos são únicos: finos, frescos e vivos. Como as ideias que permeam gerações desta família. "Não sabemos fazer de outro jeito. Para nós, o vinho é assim e pronto", simplifica Jean-Pierre, dono de uma simpatia que só é menor do que a sabedoria que discretamente carrega. E a retidão de caráter da família pode ser exemplificada se juntarmos o mundo dos mangás japoneses ao dos vinhos franceses.

 

Ambos giravam em órbitas diferentes. Ou, pelo menos, assim era até o sucesso retumbante de As gotas de Deus (Kami no Shizuku, no original). O fato é que o cartum japonês, que fala sobre vinhos reais e disponíveis no mercado, criou uma impressionante mania de vinho no Japão e na Coreia do Sul. O mangá virou uma série para a televisão, que se tornou um enorme sucesso. Em ambas as versões de As gotas de Deus, o filho de um crítico de vinhos recentemente falecido volta-se contra o irmão adotivo para provar que era o herdeiro digno da vasta coleção de vinhos do pai morto. O filho biológico, no entanto, não tem conhecimento do negócio do vinho. Ao contrário do irmão adotivo, ele não recebeu uma educação sobre safras, variedades de uva, châteaux, e todo o resto. O que ele tem de especial é um nariz capaz de identificar os mais preciosos aromas. Esse recurso faz dele um verdadeiro rival do irmão adotivo na busca dos 12 vinhos especiais que o pai chamava de "apóstolos" e de um 13º que era chamado de "as gotas de Deus". Sete milhões de pessoas assistiram ao episódio final da série de TV, onde foi revelado que "as gotas de Deus" eram, na verdade, um Château Le Puy 2003.

 

Imediatamente após a revelação, na França, em um pequeno e sossegado vilarejo de Bordeaux, o telefone de Pascal Amoreau, do Château Le Puy, E encomendas de clientes japoneses chegavam em quantidade jamais vista. "De repente, recebemos 150 pedidos por telefone, fax e e-mail do Japão. Todos querendo o Le Puy 2003. Liguei para meu importador de lá que, eufórico, disse que meu vinho tinha sido eleito o 'gotas de Deus'. Foi assim que descobri o que estava acontecendo", lembra Amoreau.

 

Mas o que começou com celebração, logo virou motivo de indignação para a família. O vinho que era vendido pela casa a 18 euros a garrafa estava custando 1 mil euros em Hong Kong. O enólogo do Château Le Puy resolveu então tirar a safra 2003 do mercado. "Tomamos esta atitude a fim de evitar a especulação, porque queríamos que este vinho, que havia sido escolhido como um vinho mítico, ficasse ao alcance de todos e não apenas para uns poucos compradores de rótulos de luxo", justificou Amoreau.

 

Posteriormente, os criadores da história foram visitar o Château. Para celebrarem o sucesso da série e do vinho, os anfitriões abriram uma garrafa da safra 1917 do Le Puy. Um 1917 natural, sem sulfito adicionado, filtração, colagem, químicos, tabelas, projeções, tendências....