O vinho… como as músicas de Prince

Haveremos de apreciar e decifrar a complexidade de uma orquestra, tal como continuaremos derretidos com a singularidade de um único acorde. Perceberemos as virtudes de ambos e rapidamente nos deteremos sobre aquilo que verdadeiramente interessa: agrada-nos ou não?

 

Aposto que se cantarolasse este refrão logo haveria um coro de vozes a acompanhar-me: “Don´t have to be rich to be my girl, don’t have to be cool to rule my world (…)”. Saída do álbum “Under The Cherry Moon”, de 1990, “Kiss” é dos hits mais intemporais do eterno Prince. Ficamos órfãos de Prince Rogers Nelson não faz muito temoi. Deixou-nos também uma overdose genial de músicas que tocam vários estilos, da pop ao funk, da soul ao jazz, do rock ao R&B. Reconhecido pelo público, pela crítica e pelos pares, foi uma estrela na verdadeira acepção humana da terminologia, capaz de surpreender quando ninguém o antecipava. Como os melhores, nunca foi unânime; como os melhores, nunca passou despercebido. Devo admitir que não faço ideia se Prince seria um grande apreciador de vinho (beberia esporadicamente, de acordo com testemunhos vertidos em publicações online), mas abuso de instantes da genialidade dele para fazer uma ligação ao vinho. É que como Prince, também os grandes vinhos não são unânimes.

 

Os conhecimentos de viticultura e o domínio da enologia são de tal forma acessíveis e partilhados que é preciso uma distração do tamanho de hectares ou um percalço inimaginável para fazer um mau vinho. Há depois, e isso já é preocupante, quem insista nos mesmos erros e acabe por produzir um mau vinho. Mas esses, quero acreditar, fazem-no com a plena convicção que estão a elaborar um grande vinho ou, pelo menos, o melhor vinho possível. “I never meant to cause you any pain (…)”, como na célebre “Purple Rain”.

 

Entender um vinho bem elaborado é fácil. Deve ter equilíbrio – a característica que mais valorizo –, possuir uma paleta cromática e aromática agradável, ter boa estrutura e finalizar bem. Se na prova corresponder ou até superar o que promete no nariz, melhor. Em termos de preço, isso é tão válido para um vinho muito acessível como para um vinho bastante dispendioso. O que separará uns e outros serão as camadas de complexidade.

 

Gosto de vinhos “certinhos” e tecnicamente perfeitos, que correspondam ao que prometem. Um Sauvignon Blanc da Nova Zelândia, um Chenin Blanc da África do Sul, um Cabernet chileno, um Cava catalão serão opções seguras para momentos tranquilos. Mas entusiasmo-me muito mais com os vinhos que desassossegam, que me obrigam tantas vezes a sair da zona de conforto para lhes captar a vibração e tentar perceber o que lhes esteve na origem. Um Arinto envelhecido de Bucelas, um Baga clássico da Bairrada, um Alicante Bouschet raçudo do Alentejo, um Very Old Porto Tawny… e tantos e tantos mais, de tantas e tantas outras regiões, de Portugal e do mundo.

 

Vivendo nós o período dos vinhos de “terroir” dirá o leitor que sou um tipo com sorte por estar nestas andanças, nestes tempos. Sim, é um facto que não me devo queixar destes dias, embora nem todos pensem assim.

 

“Just let love decide”

 

Assisto, com espanto, a uma permanente tentativa de destrinça entre heróis e vilões, que mais não é do que reduzir a diversidade do vinho a uma banda desenhada a preto e branco.

 

A pretexto do menos ser mais na viticultura e na enologia, de advogarmos a necessidade de resgatar práticas antigas para perceber a mecânica das coisas, de querermos adaptar aos nossos dias técnicas antepassadas, muito se distorce e confunde. E é ver discussões intermináveis entre quem garante que passou a beber apenas e só vinhos sem sulfitos e os que fogem deles como o diabo da cruz porque só lhes encontram defeitos e maleitas mil. Há ainda os que só bebem vinhos até 13% de teor alcoólico porque isso é que é elegância e os que não estão para aturar mariquices – vinho que é vinho tem que ter pelo menos 14,5%! Não nos esqueçamos dos que só bebem champanhes (nada de espumantes, cavas ou proseccos) do início ao fim da refeição porque sim, nem ignoremos os que garantem a pés juntos que não há vinho no mundo tão bom como aquele que na noite anterior provaram.

 

Usam-se nestas discussões argumentos quase sempre pouco fundamentados, muitos reveladores de falta de conhecimento, outros manifestamente truncados. Em nome de quê? O vinho é diversidade. Em todos os sentidos. E no momento em que tentarmos impor alguma ditadura de gosto estaremos a incorrer num pecado capital.

Hoje, os vinhos de Jura são vendidos a preços exorbitantes, esgotam com facilidade e são colocados nos píncaros pelos defensores da onda mais experimentalista. Todavia, também hoje os vinhos da Califórnia bem marcados pelo estágio em barrica e acima dos 14% continuam a ser vendidos a preços elevadíssimos, a desaparecer com facilidade das prateleiras, a merecer aplauso da crítica, a ser opção primeira de milhares de consumidores no mundo. O vinho é diversidade. Em todos os sentidos. Daí que presencie estas discussões e conversas acesas a adivinhar que quando se iniciam vão dar a nenhures.

 

Mais importante do que ser laranja ou blanc de noirs interessa-me perceber como nasceu e foi elaborado esse vinho. Mais importante do que perceber se esteve num ovo quero descobrir a razão de ser desse vinho. Mais importante do que saber se a barrica é de carvalho americano, francês ou húngaro tenho curiosidade em antecipar como evoluirá ao longo do tempo. Muito mais importante é entender que cada vinho tem uma história e depende apenas de nós criar a nossa própria estória com esse vinho. Sem extremismos. Sem preconceitos. Apenas, e já é muito, pelo amor ao vinho.

 

A exemplo do que acontece com a música, também no vinho o nosso gosto pessoal vai evoluindo com a experiência. Haveremos de apreciar e decifrar a complexidade de uma orquestra, tal como continuaremos derretidos com a singularidade de um único acorde. Perceberemos as virtudes de ambos e rapidamente nos deteremos sobre aquilo que verdadeiramente interessa: agrada-nos ou não?

 

“Why can´t we just let love decide (…)”, questionava Prince em “Diamonds and Pearls”. Afinal, se o vinho é dos bons prazeres da vida não faz lá muito sentido debatê-lo de forma azeda. Para isso teremos sempre o vinagre.

 

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DESTAQUE

 

O vinho é diversidade. Em todos os sentidos. E no momento em que tentarmos impor alguma ditadura de gosto estaremos a incorrer num pecado capital.

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