Vocês querem bacalhau?

Fotografia: reprodução da internet
J.A. Dias Lopes

J.A. Dias Lopes

Loucos por bacalhau, os brasileiros saboreiam esse peixe salgado e desidratado nas celebrações do Natal e da Páscoa. Os católicos e algumas denominações cristãs o consomem por razões penitenciais na Sexta-Feira Santa e na Quarta-Feira de Cinzas, que dá início à Quaresma. O bacalhau também integra o cardápio laico da virada do Ano Novo. É estrela luzidia de entradas, pratos principais e acompanhamentos, feitos no forno, fogão ou grelha. Tem sido assim há muitos anos.

 

 

Entende-se a sobrevivência gastronômica do bacalhau.  Trata-se de um ingrediente versátil no preparo, delicioso na textura e divino no sabor.  Só não alcança maior difusão por ser importado, processado cuidadosamente e daí resultar pesado no bolso dos brasileiros. Vem das águas geladas do Círculo Polar Ártico, sobre as quais se alinham oito países e regiões: Noruega, Suécia, Finlândia, Rússia, Alasca (Estados Unidos), Terra Nova (Canadá), Dinamarca (Groenlândia) e Islândia.

 

 

Aprendemos a comer bacalhau com os portugueses, pioneiros mundiais em sua pesca sistemática. Também o lançaram na dieta do Ocidente cristão e nas mesas do Natal, Páscoa, dias religiosos e Ano Novo. Auguste Escoffier (1846-1935), o chef francês que revolucionou não apenas a cozinha do seu país, mas a própria culinária europeia, avalizou a primazia. “Devemos aos portugueses o reconhecimento por terem sido os primeiros a introduzir na alimentação este peixe precioso, universalmente conhecido e apreciado”, afirmou.

 

A adoção do bacalhau teve motivo eclesiástico. Deveu-se à Igreja Católica. Portugueses, espanhóis e italianos, sobretudo, começaram a consumi-lo no final da Idade Média, em substituição à carne vermelha, banida por razões teológicas. Foi interditada severamente no período de abstinência e jejum da Quaresma – que vai da Quarta-Feira de Cinzas ao Domingo de Ramos – e nas sucessivas vigílias de então, ou seja, nas vésperas das festas litúrgicas. O fiel que desobedecesse arriscava-se a ser castigado. Em 1481, no governo dos Reis Católicos, D. Isabel de Castela e D. Fernando II de Aragão, um frade de sobrenome Savariego foi queimado vivo “por fartar-se de comer carne”. Havia acabado de fazer uma pregação na Sexta-Feira Santa.

 

 

A carne foi banida por evocar o sangue derramado por Jesus Cristo ao ser crucificado. Privando-nos dela, segundo teólogos antigos, “descartamos um alimento estimulador das pulsões materialistas e dos instintos animalescos”, enfim, exorcizamos o pecado. Na estimativa do escritor espanhol L. Jacinto García, autor do livro “Comer Como Dios Manda” (Ediciones Destino, Barcelona, 1999), eram tantos os dias de abstinência e jejum de carne vermelha, durante os séculos XVI, XVII e XVIII, que ocupavam mais de um terço do ano.

 

 

Em torno do século X, a Igreja Católica autorizou a substituição da carne vermelha pela de peixe, que figura como alimento precioso em muitas passagens evangélicas. Quando ressuscitou, Jesus Cristo se dirigiu aos apóstolos. Eles o receberam cheios de medo, pois julgavam enxergar um espírito. Querendo mostrar que era de carne e osso, o fundador do cristianismo mostrou-lhes as mãos e os pés. Como os apóstolos continuassem perplexos, perguntou-lhes: “Tendes por aqui alguma coisa para comer?”.

 

 

Ofereceram-lhe um pedaço de peixe assado, que Jesus Cristo comeu na frente deles (São Lucas, 24,41-42). Obviamente, o bacalhau entrou no cardápio humano por essa via. Além disso, durava um ano sem estragar, tinha o sabor considerado pouco modificado e era o único jeito de as populações do interior comerem peixe do mar em uma época desprovida de refrigerador. Para completar, sendo abundante, custava pouco.

 

 

Já na ceia da virada do ano, sua presença se relaciona com a magia, destituída de complexo ritualista, relacionada aos presságios e à gratificação da comida. Ainda hoje o povo diz ser de bom augúrio e propiciador de dinheiro festejar o Réveillon com alimentos cujo volume aumenta no cozimento, como a lentilha; a amêndoa, noz, avelã, figo seco e uva passa, que duram muito tempo sem estragar; a carne de animais que avançam fuçando, como o porco, e dos ovinos e bovinos que não andam para trás; e peixes briosos como o salmão e o bacalhau, que nascem e enfrentam intrépidos os mares.

 

 

Abolidas as restrições eclesiásticas – para os católicos modernos, o jejum e a abstinência de carne vermelha se restringem atualmente à Quarta-feira de Cinzas e à Sexta-Feira Santa -, o bacalhau ficou integrado aos hábitos alimentares do Ocidente cristão, para fiéis ou não. Descobriu-se que, além do prazer à mesa, proporciona vitaminas, ferro, cálcio, fósforo e magnésio. Mesmo não sendo fresco, mantém as propriedades naturais, sendo mais nutritivo do que os outros peixes, do que as carnes bovina e suína, as da galinha e aves em geral. Para completar, quando reidratado, supera em sabor os pescados submetidos ao mesmo processo de conservação.

 

 

Segundo o dramaturgo e escritor brasileiro Guilherme Figueiredo, no livro “Comidas, Meu Santo! (Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1964), os navegadores lusitanos já iam capturar bacalhau nas costas da Inglaterra, em 1353, então abundante na região. No século XV, seguiram avante, passaram a pescá-lo no Círculo Polar Ártico. Foram os portugueses os primeiros a capturar o bacalhau na Terra Nova, em 1497. Há registros de que em 1508 já correspondia a 10% do peixe comercializado em Portugal.

 

É historicamente compreensível que o povo lusitano colecione o maior número de receitas de bacalhau do mundo. São tantas que eles arredondam o total para “um milhar mais um”. Os portugueses as preparam de todos os jeitos, saboreando cerca de 70 mil toneladas de bacalhau por ano, que equivalem a 7 kg per capita, enquanto seus vizinhos espanhóis, por exemplo, não passam de 1 kg por habitante. O Brasil também saboreia uma enormidade: aproximadamente 20 mil toneladas por ano, sendo 85% da Noruega. Mas, como tem uma população de 212 milhões de habitantes, o consumo não chega a 100 gramas per capita.

 

 

Convém lembrar que a palavra bacalhau não designa o animal aquático, mas o processo de salga e secagem aplicado a cinco peixes de quatro famílias diferentes. Todos são chamados de bacalhau no mercado brasileiro. O legítimo, mais nobre e suculento, denomina-se Cod (Gadus morhua), da família Gadidae. Salgado e desidratado, ostenta cor amarelo-palha e uniforme; ao ser cozido, separa-se em lascas claras e tenras, de sabor inconfundível. Destina-se a todos os grandes pratos, cozido, frito, assado ou grelhado.

 

 

Vem em seguida outro Cod (Gadus macrocephalus). Apesar de muito semelhante em aspecto ao Gadus morhua, salvo pela forma das nadadeiras e pela cor, tem a carne ligeiramente mais clara e fibrosa, não separando-se em lascas. Desfruta por isso de menor prestígio. Custa até 20% menos. Pode ser feito da mesma maneira que o Gadus morhua.

 

 

Outros três peixes também se prestam à salga e secagem: o Saithe (Pollachius virens), campeão de importações no Brasil, de carne mais escura e sabor mais forte, indicado às saladas, bolinhos e ensopados temperados; o Ling (Molva molva), com o corpo mais estreito, que rende bom corte, de carne clara, apetitosa e firme, cujas ovas são consideradas iguaria na Espanha; e o Zarbo (Bosmius brosme), de carne branca, firme e fibrosa com sabor que evoca marisco, sendo usado em caldos e pirões. Dos cinco peixes, os cozinheiros aproveitam tudo: lombo, cara, bochechas, língua, nas formas de posta, lombo, lascas e ainda desfiado.

 

 

A tradição sustenta que o bacalhau chegou no Brasil em 1500, a bordo da naveta de mantimentos de Pedro Álvares Cabral, nosso descobridor oficial. A dúvida se deve ao fato de, na lista de alimentos transportados, não haver referência ao nome bacalhau, mas apenas menção a peixe salgado. Na prática, porém, o peixe salgado e desidratado só começou a ser difundido por aqui a partir de 1808, quando D. João VI e a corte lusitana se instalaram no Rio de Janeiro, escapando das tropas invasoras de Napoleão Bonaparte, que avançavam sobre Lisboa. Começamos a importá-lo da Noruega apenas em 1843, trazendo-o depois também do Canadá e do Alasca.

 

 

Com a chegada de D. João VI e da corte, entraram em moda no Rio de Janeiro três pratos do precioso peixe oriundos do além-mar. Eram o bacalhau assado “nas grelhas e por outros modos”, à bechamel e à provençal. Compunham o receituário do livro “Cozinheiro Moderno ou Nova Arte de Cozinha”, lançado em Portugal no ano de 1780, pelo francês Lucas Rigaud, chef contratado por D. Maria I, mãe de D. João VI, que por sinal veio com o filho e morreu no Rio de Janeiro.

 

Até hoje o Brasil prepara receitas lusitanas ou adaptadas ao nosso gosto, como uma que incorpora leite de coco e outra, azeite de dendê, por exemplo. Sem levar em conta o bolinho de bacalhau, uma instituição nacional, presente no couvert dos restaurantes de cozinha portuguesa, ou não, obrigatório entre os petiscos dos milhares de botecos nacionais. Quanto às receitas, só no best-seller “Dona Benta – Comer Bem” (Companhia Editora Nacional, São Paulo, SP, 2003) há 15; e “O Grande Livro da Cozinha Maravilhosa de Ofélia” (Companhia Melhoramentos, São Paulo, SP, 1998) traz 14, com variadas influências. Mas desenvolvemos algumas extraordinárias, três das quais são emblemáticas.

 

Uma descende do bacalhau assado com batatas ao murro, prato tradicional da gastronomia lusitana, talvez originário do Ribatejo, ou seja, do centro de Portugal. Consiste em uma feliz adaptação, de autoria do paulista Carlos Ernesto Cabral de Mello, emérito consultor de vinhos e aplicado cozinheiro amador. A diferença é empanar a posta do peixe na farinha de rosca, com alho em pó. Não por acaso, chama-se bacalhau do Cabral.

 

 

A segunda grande receita à brasileira teve como coautor o português Armando Soares dos Reis (1920-2002), figura queridíssima em São Paulo, onde vivia. É o bacalhau à Mia. Surgiu na segunda metade do século passado. Homenageia a brasileira Guilhermina Reis, a Mia, com quem Armando Reis era casado. Ela inventou a receita ouvindo o palpite do marido, gastrônomo de paladar afiado. O bacalhau à Mia faz sucesso em restaurantes de São Paulo. Converteu-se, por exemplo, em campeão de vendas do requintado A Bela Sintra, do alentejano Carlos Bettencourt.

 

 

O terceiro bacalhau notável do Brasil se intitula à Pereira Ignácio, sobrenome de um grande empresário. Seu inventor: António Pereira Ignácio (1875-1951), também nascido em Portugal. Ele o elaborava para a família, recusando oferecimentos de ajuda. Filho de um sapateiro, Pereira Ignácio foi imigrante pobre e enriqueceu em nosso país. Trabalhou no comércio de Sorocaba, no interior de São Paulo, tornou-se industrial, controlando empresas de tecidos. Em 1918, adquiriu no município paulista de Votorantim, na época distrito de Sorocaba, a massa falida do Banco União de São Paulo. O negócio se converteu anos depois no poderoso Grupo Votorantim.

 

 

O mais festejado personagem brasileiro ligado ao bacalhau, porém, não inventou nenhuma receita e sequer era um craque na cozinha. Foi o divertido comunicador de rádio e televisão Abelardo Barbosa de Medeiros, o Chacrinha (1917-1988), um carioca nascido em Surubim, Pernambuco. Ele apreciava o bacalhau nunca chega, receita lusitana antológica. Conta-se que o rei português D. Carlos I (1863-1908) apareceu inesperadamente em uma de suas quintas, vindo de uma caçada. Como sentisse fome, pediu algo para comer.

 

 

A cozinheira se desesperou, pois a despensa estava quase vazia. Recuperando a calma, juntou sobras de bacalhau e presunto, além de cebolas, ovos, salsinha, pimenta-do-reino e batata-palha frita na hora. A seguir, improvisou um prato. D. Carlos I gostou tanto que o repetiu sem parar. Assim surgiu o bacalhau nunca chega. Chacrinha o pedia sempre no esplêndido e desaparecido restaurante carioca Antiquarius, do alentejano Carlos Perico. 

 

 

Apresentador de programas de auditório com impressionante sucesso entre as décadas de 1950 a 1980, ele foi contratado pela rede de supermercados Casas da Banha, com sede no Rio de Janeiro, que tinha centenas de peças de bacalhau encalhadas. Saiu da cabeça do pândego comunicador a solução do problema. Chacrinha pediu às Casas da Banha peças inteiras de bacalhau e passou a arremessá-las no auditório. Jogava-as como se fossem bumerangues sem volta, dançando ao som de música alta e “balançando a pança/ e buzinando a moça/ comandando a massa”, como assinalou Gilberto Gil na letra da antológica canção “Aquele Abraço”.

 

Enquanto as peças voavam sobre a plateia, Chacrinha gritava um dos seus famosos bordões: “Vocês querem bacalhau?”. O povo as disputava enlouquecido. A repercussão daquele espetáculo, repetido em muitos programas, acabou com o encalhe e a Casas da Banha teve que importar bacalhau incessantemente. Hoje, ninguém mais precisa fazer promoção de bacalhau no Brasil, pelo menos em auditório. Pena que o câmbio estratosférico e o preço elevado dificultem o consumo da maravilha. Em todo o caso, vale a pergunta: vocês querem bacalhau?