Black Chefs Matter

Fotografia: Divulgação
Gilberto Porcidonio

Gilberto Porcidonio

“Em nós, até a cor é um defeito. Um imperdoável mal de nascença, o estigma de um crime. Mas nossos críticos se esquecem que essa cor é a origem da riqueza de milhares de ladrões que nos insultam; que essa cor convencional da escravidão tão semelhante à da terra, abriga sob sua superfície escura, vulcões, onde arde o fogo sagrado da liberdade.”

Luiz Gama, poeta negro e um dos maiores abolicionistas da história brasileira.

 

 

 

“Falta negro na gastronomia”, onde é que está o erro desta frase? De acordo com os profissionais negros selecionados para esta matéria investigativa que trazemos aqui à GULA para discutir o racismo estrutural que também afeta as nossas mesas, o erro já parte de uma premissa equivocada entre o que se considera gastronomia – ou seja, tudo aquilo que é valorizado, badalado e tido como um trabalho de vanguarda – e o que se considera culinária – o que é subalternizado, menosprezado e tido como algo menor.

 

Chef e professora de Projeto de Criação em Gastronomia na Univeritas, Andressa Cabral comanda a cozinha do Meza Bar no Rio de Janeiro, é pós-graduada em Design Estratégico pelo IED (Istituto Europeo di Design) e formada em Gastronomia pela Alain Ducasse Formation. Para Andressa, há uma seletividade conveniente em quem mantém essa estrutura que também é amparada pelo silêncio de quem se acostuma a ela e também na falta de honestidade para se admitir que o que falta, na verdade, é o protagonismo negro, já que o negro está na cozinha desde sempre.

“Tem gente aos montes dentro da gastronomia a não ser que se considere apenas aquela parcela da área de atuação que é projetada para fama, sofisticação e intelectualidade porque, se pensar como um todo existe uma estratificação. Os cozinheiros de linha, as merendeiras de escola, os auxiliares de serviços gerais são pretos em maioria. Nestes cargos a sociedade entende como bem natural a presença do preto. Quando a gastronomia passa a se chamar gastronomia, com investimento e prestígio, ela passa a ser branca.”

 

Para a chef carioca que se especializa na comida com elementos afro do Brasil e de outros países, os próprios critérios que norteiam o que se entende como gastronomia tradicional precisam ser repensados, já que ela renega essa “pretitude” ao retirar os seus protagonistas de suas criações.

 

“Todo mundo tem que fazer esse exercício de enxergar isso junto porque a gente vive uma mentira. Aqui, temos uma gastronomia que é pautada numa culturalidade afro-indígena e onde os grandes especialistas em mandioca, o ingrediente mais importante desse país, são todos brancos; os especializados em cozinha quilombola são brancos; e os jantares caros com pratos ligados aos orixás, a gente paga mais quando o chefe é branco. As pessoas deveriam ser reapresentadas para as histórias que elas estão vivenciando. Já tivemos a onda do uso de ingredientes nacionais e ter a cara de pau de não entregar o protagonismo para os pretos. Agora diz-se muito da cozinha afetiva e eu quero ver se a gente vai ter a honestidade de encarar que ela é a da pessoa preta, de fundo de quintal, de quem vai visitar a tia do subúrbio, subir uma comunidade ou visitar os interiores do país”, diz Andressa.

 

“Negar e silenciar é confirmar o racismo.”,

Roger Machado, técnico de futebol

 

 

De acordo com a chef Dandara Batista, que oferece, no Rio, pratos de países da África e também criações brasileiras inspiradas nos sabores africanos em seu restaurante Afro Gourmet, o que falta mesmo é interesse em conhecer o trabalho e as histórias das pessoas negras na cozinha, que também são diversas.

“De uma forma geral, somente restaurantes de luxo são avaliados por especialistas e quantos chefs negros são donos desse tipo de restaurante? Quantos comandam essas cozinhas? E mais: quantos negros tem poder aquisitivo para frequentar esses restaurantes estrelados? É um sistema completamente elitista e excludente. É uma estrutura que com certeza reforça o racismo.”

 

“O racismo é como a poeira no ar. Parece invisível, mesmo que você esteja se asfixiando, até que você deixa entrar o sol. Então vê que está em todas as partes. Se deixarmos a luz entrar, teremos a chance de limpá-lo. Mas temos que estar atentos, porque continua no ar”.

 Kareem Abdul-Jabbar, lenda dos Los Angeles Lakers e um dos atletas mais politicamente comprometidos de seu tempo.

 

 

Esse apagamento do negro tanto no comando de uma cozinha quanto nas mesas dos restaurantes badalados fazem parte de uma questão racista bem naturalizada. Em São Paulo, a chef baiana Ieda de Matos, que toca, na Casa de Ieda, tudo aquilo que aprendeu na infância vivida na Chapada da Diamantina, sente, até hoje, os efeitos desse apagamento de sua história e de seus colegas. Muitas vezes, isso vem de seus próprios clientes.

“Tem gente que vem ao restaurante e que come, gosta, agradece e vem falar comigo: 'nossa, eu gostaria tanto de conhecer a Ieda. Que dia e horário que eu poderia encontrá-la?' Aí eu me apresento mas com o coração apertado. Eu sinto no olhar da pessoa ela me dizendo 'a Ieda não pode ser essa preta aí'. Mas nada disso me intimida, muito pelo contrário”.

 

 

“O Brasil aplaude a miscigenação quando clareia. Quando escurece, ele condena. O táxi não para pra você, mas a viatura para. Esse é o problema urgente do Brasil.”

Emicida, raper paulistano

 

 

E como mudar parte desse panorama? No Rio, o chef João Diamante, que começou aos 8 anos como padeiro na comunidade Nova Divineia, no bairro de  Andaraí, na Zona Norte do Rio, trabalhou na Marinha, estagiou nos restaurantes do chef francês Alain Ducasse na França e, hoje, toca o Na Minha Casa, um restaurante sem cardápio e preço fixos no Mercado Municipal do Rio de Janeiro (Cadeg), conseguiu aproveitar as oportunidades que surgiram por ser oriundo de projetos sociais. Por isso é que, hoje, ele tem o seu projeto Diamantes na Cozinha.

“É preciso a gente dar conhecimento e incentivar os nossos a não desistir porque é possível. Historicamente, pretos na cozinha era símbolo de servilismo, como nos tempos da Escravidão. Hoje, com o glamour que a cozinha ganhou, fomos espremidos para fora dela e presenciamos a branquitude fazendo os nossos pratos. Hoje, no curso de Gastronomia da UFRJ, a nota de corte é mais alta do que para Medicina”, disse João.

 

 

“Todo mundo tem que fazer esse exercício de enxergar isso junto porque a gente vive uma mentira. Aqui, temos uma gastronomia que é pautada numa culturalidade afro-indígena e onde os grandes especialistas em mandioca, o ingrediente mais importante desse país, são todos brancos; os especializados em cozinha quilombola são brancos; e os jantares caros com pratos ligados aos orixás, a gente paga mais quando o chefe é branco”.

Andressa Cabral, chef de cozinha do Meza

 

 

O isolamento racial não se dá só nas panelas. No mundo da coquetelaria, há poucos profissionais que ganham a visibilidade que o bartender Yuri Evangelista, o chefe de bar do Coltivi, no Rio de Janeiro, percebe que a representatividade preta em cargos de importância na gastronomia quase não existe.

 

“Acredito que, se um chefe de cozinha e um bartender preto tiverem as mesmas oportunidades que um chefe branco e um bartender branco, são capazes, sem dúvida, de serem premiados. Essa inclusão na gastronomia, seja ela moderna ou tradicional, é necessária e urgente”.

 

 

“Sempre quis saber por que Tarzan era o rei da selva na África e era branco. Um homem branco com uma tanga na África gritando: ‘Oh, oh, oh, oh!’ Ele briga com os africanos e quebra as mandíbulas dos leões. Além disso, Tarzan fala com os animais, e os africanos que estão lá durante séculos não podem falar com os animais. Só o Tarzan pode.”,

Muhammad Ali, o pugilista mais importante da história e ativista da luta pelos direitos dos negros.

 

 

Para a chef Kátia Barbosa, a dona do Aconchego Carioca que, de uma infância pobre em Ramos, na Zona Norte carioca, conquistou paladares como os de Claude Troisgros, Ferran Adrià e Nigella Lawson com as suas criações como o icônico bolinho de feijoada, é impossível mensurar o quanto que a gastronomia perde com o apagamento do negro de sua história. Além disso, de acordo com a sua visão, todos os guias de ranking gastronômico reproduzem a mesma lógica de exclusão do negro.

 

"Em 2018, só havia dois chefs negros com estrela Michelin. No ano passado, nos Estados Unidos, uma chef foi a primeira negra a ganhar estrela, a Mariya Russell. Assim, o mundo perde, a gastronomia perde, a cultura alimentar perde e a cultura como forma de expressão gastronômica também perde. Vejam o que a cultura gastronômica é capaz de fazer com um país como o Peru. Será que, em 54 países africanos, ninguém tem consistência para agradar esses guias?"

 

No final do ano passado, Mariya Russell, do Kumiko, tornou-se a primeira mulher negra a conquistar uma estrela Michelin. Há apenas outros dois chefs  negros nos Estados Unidos também estrelados. No Reino Unido, o panorama não é melhor: apenas dois chefs negros possuem estrela Michelin. No Brasil, não há nenhum.

 

“A mudança não chegará se esperamos outra pessoa ou outro tempo. Somos nós mesmos os que estávamos esperando. Somos a mudança que buscamos.”

Barack Obama, ex-presidente dos Estados Unidos da América

 

 

 

Crédito das Fotos:

Andressa Cabral – Divulgação/ João Pedro Pepe

João Diamante – Divulgação/ Lucas Landau

Capa, Dandara Batista, Ieda de Matos, Kátia Barbosa – Divulgação

 

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